A Dimensão Mística - Introdução

Desde épocas pré-históricas, o homem, através de ritos, orações, meditações, posturas, exercícios respiratórios, etc. procura entrar em contato com seres que existem numa outra dimensão daquela de sua existência quotidiana: a dimensão mística.
Diferenciados por suas culturas e credos religiosos, os homens invocam a divindade, deuses, anjos e demônios, além dos espíritos dos antepassados, tendo como objetivo o comunicar-se e obterem a proteção em seus dramas e negócios.
Embora seja muito importante, não vamos indagar da existência real ou imaginária de tais seres, nem da origem da crença a eles devotada pelos homens. Esta tarefa pertence ao âmbito da história das religiões, da psicologia e da parapsicologia entre outras especialidades.
Para o nosso objetivo, o importante é constatar que êste acreditar e esta procura pelo místico é uma dimensão incrustada na própria essência do homem. Para que êste fato se torne mais claro, vamos concentrar rapidamente nossa atenção em algumas atividades, pelas quais o místico se mostra, torna-se visível para aqueles que crêem.

1. – Ritos e Sacrifícios – A procura do homem pelo contato místico tem suas raízes na pré-história. O rito consta de palavras, gestos e músicas que assumem uma significação simbólica e que tem por objetivo colocar o homem e tôda uma comunidade em contato com a divindade. Durante o rito, a divindade é louvada, mas também instada a ajudar seus fiéis em suas necessidades, ou ter aplacada sua cólera, recebendo em troca, além de orações, oferendas e promessas de fidelidade. Aos ritos, muitas vezes está relacionado o sacrifico, que pode ser incruento, oferecimento de vegetais, ou cruento, no qual um animal é sacrificado para ser oferecido aos deuses; muitas vezes acontece o sacrifico humano.
Para a maioria das religiões antigas, a maneira com que o ritual fosse executado, era mais importante que a intenção pela qual o mesmo era oferecido.
No hinduismo, é primordial a importância dos ritos na época bramânica, estes eram presididos por um sacerdote, e, da perfeita execução dos ritos, dependia a resposta da divindade. Os Quatro Vedas, livros sagrados do bramanismo, referem-se ao ritual e ao sacrifício.
No Zoroastrismo, o principal objeto de culto é o fogo sagrado, símbolo da justiça. Venera-se o fogo, da mesma maneira que o cristão venera a cruz. Somente sacerdotes presidem e servem com um ritual muito elaborado o fogo sagrado.
Entre os Sikhs, o rito se processa em torno ao Livro Original, o “Guru Granth Sâhib”. Em Amritsar, todas as manhãs, é transportado em procissão, em meio a cânticos dos fiéis do “Trono do Eterno” até ao “Templo de Ouro”e, reconduzido, novamente a tarde para o “Trono do Eterno” onde permanece a noite.
Para o taoísmo, o culto se concentra na oferenda de incenso, que é oferecida pelo chefe do defumador, escolhido anualmente pela comunidade taoista.
Entre os Incas, em ocasiões especiais e, dentro de um ritual se praticava o sacrifício humano. A vítima era sacrificada por estrangulamento, tendo seu coração arrancado ou sendo queimada viva.
No antigo Testamento temos muitos relatos de sacrifício, como os de Abel, Caim, Melquisedeque, Elias só para citarmos alguns como exemplo.
No cristianismo, não só o sacrifício humano, mas mesmo o de animais foi abolido; em seu lugar um único sacrifício, o de Cristo na Cruz, morto para a Redenção dos pecados, que é tornado presente, mìsticamente e de forma incruenta no sacrifício da Missa.

2. – Oração e Meditação – A oração pode ser comunitária ou individual; pode ser através de fórmulas ou espontâneas.
Em si, a oração é um diálogo, um diálogo entre o homem e Deus; no qual o homem glorifica a Deus, pede-Lhe perdão, solicita-Lhe auxílio e agradece-Lhe.
Algumas vezes, a oração mistura-se à magia e à superstição; neste caso, atribui-se à própria oração um poder que submete os homens e às vezes até mesmo os deuses. Este tipo de oração encontramos tanto no oriente, quanto no ocidente, mas não tem guarida entre as religiões mais puras e elevadas.
No Islã, a oração é um dos pilares da religião. Cinco vezes ao dia, conforme o tempo prescrito, o mulçumano deve voltar-se para Meca e orar. A recitação de trechos do Alcorão faz parte de suas orações, como os versículos abaixo:

“Guia-nos pelo caminho direito,
Pelo caminho dos que auxiliaste;
Não pelos que incorreram na tua cólera,
Nem pelo dos que se perderam”(1,6-7)
“Dize: ‘Ele é Deus único’,
Deus eterno!
Ele não engendrou e não foi engendrado,
Ninguém é igual a Ele”(Cap.112)

Em Israel, nos profetas, em Salomão e nos Salmos, encontramos belos exemplos de oração, citemos apenas o salmo 51, versículo 19.

“O meu sacrifício, Senhor, será o meu espírito contrito; Senhor, vós não desprezais um espírito contrito e humilhado”.

No cristianismo, as orações do Pai Nosso, da Ave Maria, o Magnificat e outras são bíblicas; muitas orações foram compostas por santos e místicos; outras, por sacerdotes e pela autoridade religiosa.
Se a oração é um diálogo com Deus, a meditação torna este diálogo mais íntimo. O objetivo da meditação é colocar o homem em contato com o divino, com a realidade que fundamenta este mundo em que vivemos.
Para uma meditação profunda, é preciso eliminar tudo o que nos distrai, tudo que nos atrai e nos fala sobre fatos e acontecimentos do dia a dia. É preciso encontrar o silencio, não tanto o silencio que nos isola do barulho e dos ruídos exteriores, embora êste seja de grande valia para quem quer meditar, mas o silencio interior que elimina nossos interesses passageiros, nossos apegos carnais e mesmo espirituais e até mesmo nossos mais íntimos desejos.
Para conseguirmos êste silencio e para meditarmos profundamente, muitas técnicas nos são oferecidas por mestres espirituais e por gurus, desde métodos ascéticos que prevem sacrifícios, jejuns e muita oração, até exercícios que nos ensinam posturas e métodos de respiração.
Na tradição hinduísta, destacamos a Yoga, já bastante conhecida e divulgada entre nós, que além de visar à união com o divino, visa também o equilíbrio psíquico somático e emocional do praticante da Ioga. A iluminação, através da Yoga, alcança-se após um longo período de prática dos exercícios e da meditação; já para o Zen Budismo, a iluminação acontece repentinamente.
Deixando de lado os demais objetivos, tais como um crescimento espiritual e o equilíbrio da personalidade, que podem ser alcançados, quer pela prática da Yoga, quer pela prática de exercícios espirituais, como os retiros e a ascese, concentremos nossa atenção no que apenas poucos conseguem:



3. – A Iluminação e A Visão Beatífica – A palavra Iluminação é usada mais com referencia à experiência dos grandes místicos do Oriente; a expressão Visão Beatífica reserva-se para as experiências místicas dos grandes santos do cristianismo. Se estas duas expressões se equivalem, ou não, jamais o saberemos.
Siddhârta Gautami, príncipe do clã dos Sâkya, após ter contato com a velhice, a doença e a morte, desilude-se com a vida principesca que levava e decide abandonar o palácio, passando a viver na mendicância, pensando encontrar nesta vida de radical ascetismo a resposta para o sofrimento que cercava a vida humana; desiludido deixa também êste estilo de vida e, numa determinada ocasião, estando a meditar debaixo de uma figueira, é iluminado e, torna-se Buda. Tendo descoberto a razão do existir e da realidade, em lugar de ingressar no nirvana, permanece entre os homens para ensinar-lhes o caminho da libertação.
Muito semelhante é o que aconteceu com Mahâvira; o “Grande Herói” nasceu aproximadamente na mesma época que Buda e, também filho de uma família de príncipes do nordeste da Índia, casou-se, viveu no luxo até por volta dos trinta anos, depois rompeu com tudo para viver a vida de um mendigo religioso itinerante, obteve a iluminação e passou os últimos quarenta anos de sua vida a pregar a sua doutrina, é o fundador do Jainismo: cuja religião teve entre seus seguidores Mahatma Gandhi.
Maomé, jovem chefe de caravanas, acostumava se retirar em uma caverna do monte Hira, perto de Meca, para aí meditar quando recebeu as primeiras revelações com a idade de quarenta anos. A Maomé foi-lhe confiado o livro sagrado o Alcorão e dado a missão de propagar a religião mulçumana, como o profeta de Allah, o único Deus.
Também foi num monte, o monte Sinai que Moisés recebeu de Deus as tábuas da Lei; antes, porém, Moisés já havia sido chamado, “vocacionado”, por Javé no episódio da sarça ardente, para ser seu profeta.
Assim como Moisés, outros profetas, como nos relata a Bíblia tiveram o privilégio de dialogar diretamente com Javé.
Na história da Igreja, muitos santos nos relatam suas experiências no contato direto com Deus e da difícil caminhada, passando por muitos sofrimentos, até gozarem da visão de Deus; a visão beatífica. Entre estes santos, não poderíamos deixar de citar São João da Cruz, Santa Tereza D’Ávila e Mestre Eckart. São Francisco de Assis que procurou conformar a sua vida àquela de Cristo, por diversas vezes ouviu a voz do Senhor, como, por exemplo, quando caiu prisioneiro e enfermo ao dirigir-se para a guerra ou, quando conversou com o crucifixo de São Damião, foi recompensado ao ter os estigmas impressos em seu corpo.

4. – A Doutrina do Corpo Místico - Na primeira Epístola aos Coríntios, São Paulo nos fala de sermos um com Cristo, sendo êste a cabeça e nós os membros. A partir desta figura paulina, teólogos elaboraram a doutrina do Corpo místico de Cristo, que torna mais fácil de entender a missão salvífica de Cristo, pois se fazemos parte do mesmo corpo, embora com funções e dignidade diferentes, não é de estranhar que a seiva vivificadora, a graça de Cristo, percorra todo o corpo, trazendo o perdão e a salvação a seus membros. Numa interpretação mais limitada, participariam do corpo místico, sòmente os batizados; mas numa visão mais ampla, todos os homens seriam membros do Cristo Místico: afinal Cristo morreu por todos.

Misticidade

1. – As relações entre os homens não se limitam àquelas propiciadas pela mundanidade, sociabilidade ou historicidade. Existem relações mais profundas e perfeitas; as relações místicas.
Os homens estão integrados num todo místico. As ações de cada individuo, mesmo aquelas realizadas no seu intimo e, aparentemente sem qualquer relação com os demais, tem conseqüências na totalidade mística que forma a humanidade.
A afirmação da misticidade não destrói a personalidade: somente seres pessoais são capazes de relações místicas. O simples fato de pertencer a uma mesma espécie ou gênero, não faz com que os indivíduos desta espécie ou deste gênero estejam integrados num todo místico. A relação de semelhança entre indivíduos pertencentes a uma mesma espécie ou gênero é exterior e acidental; a relação mística, interior e essencial.
A relação mística é relação entre Pessoas; relação toda interior existente entre seres conscientes e livres.
A unidade mística da humanidade, não elimina a unidade interior e pessoal de cada homem. Misticamente unidos entre si, os homens formam um todo real e existencial, não simples unidade moral ou idealidade abstrata, no qual cada membro conserva intacta sua personalidade.
Do mesmo modo como o homem é ser único, em que corpo e alma, não obstante diversos em sua natureza, formam unidade indissolúvel; assim a unidade mística da humanidade é indissolúvel, embora integrada por pessoas totalmente distintas entre si. É a resolução da multiplicidade na unidade.

2. O homem é ser místico; seu existir, um existir místico.
Muito embora as provas sobre a existência de seres extratemporais e, em particular as provas da existência de Deus, não sejam de todo convincentes, não se pode negar a crença universal, depositada nestes seres, nem sua influência na existência humana. A analise da misticidade não pode ignorar êste fato, não pode deixar de incluir Deus e a divindade em suas considerações.
Os seres contingentes, não encontrando em si a razão de seu existir, devem encontrá-la em outro ser que não seja também contingente, o ser-nescessário. O ser-nescessário, nesta perspectiva, seria o Criador de todos os seres contingentes.
Existe, portanto, relação de dependência absoluta das criaturas subordinadas ao Criador. O homem não é exceção; mas, porque livre e consciente, encontra-se na presença do Criador como ser-pessoal.
Sendo ser-pessoal, o homem deve ser necessariamente consciente e livre; mas, sendo contingente, é totalmente dependente do ser-nescessário. Assim, todo o seu ser, incluindo sua liberdade e consciência, é sustentado pelo mesmo ser que causou seu existir.
Entre o homem e o Criador, estabelece-se relação de caráter pessoal. Relação íntima e perfeita, porque sendo o ser humano sustentado naquele do Criador, é por este penetrado, permanecendo-lhe distinto.
A unidade mística da humanidade encontra sua sustentação na relação pessoal entre o homem e Deus. É na contínua presença, porque presença pessoal, do Criador em nós, e de nós no Criador que é realizada esta unidade mística.
Existir misticamente é existir em comunhão com o Criador e com os homens.
É no seio desta comunhão mística que devo existir. Existir como ser-pessoal, mas de tal maneira integrado na totalidade mística, que o meu existir é o existir do todo; o existir do todo, o meu existir.
Finalmente, minha existência, a existência da totalidade mística é participação na existência do Criador.
A unidade mística é realizada no mais profundo do ser humano, a consideração da misticidade leva-nos a mais profundo e perfeito conhecimento do homem. O ser do homem é ser essencialmente místico.

3. – A realidade da misticidade, sendo interior ao mais profundo do ser humano, interior à sua própria essência, não pode ser percebida pelos sentidos, não pode ser deduzida através do raciocínio abstrato. É através da intuição, realizada no decorrer da existência, que, penetrando a essência do próprio ser, o homem experimenta a existencial realidade de seu ser, como ser místico.
Embora não tendo clara e perfeita a intuição de sua própria misticidade, o homem a tem obscura e imperfeita. A intuição da misticidade parece-me ser intuição universal; sua profundidade depende da profundidade da existência interior de cada homem.
É na experiência religiosa, que constatamos mais facilmente esta intuição; mas, mesmo aquele homem que se diz a-religioso em suas considerações acerca da humanidade, propicia-nos razões para crer ter êle, também, certa intuição daquela essencial interdependência dos homens, que para nós constitui a misticidade.
As diversas formas de panteísmo, que constituem o núcleo de muitos sistemas filosóficos e de muitas crenças religiosas, são interpretações racionais, baseadas na fundamental intuição da misticidade humana.
Devido às limitações de nossa capacidade cognitiva, devido à impossibilidade para nós de pura intuição, da participação dos sentidos e da capacidade abstrativa em todos os atos de nosso conhecer, apenas somos capazes da constatação da misticidade; não de sua total compreensão. A realidade mística para nós permanece misteriosa.
A parcial incompreensibilidade do Mistério da misticidade torna nossas tentativas de interpretar racionalmente e de transmitir a outrem nossas experiências místicas, destinadas ao fracasso.
Nada obsta, entretanto, a experiência existencial da misticidade, no contínuo intuir de nosso ser. Nada obsta, também, sua simples descrição, destinada a auxiliar outrem, no constatar e no penetrar de sua própria realidade mística.

4. No agir livremente, o homem acrescenta algo a seu “eu”, enriquecendo-o ou empobrecendo-o. Porque, mìsticamente unidos aos demais homens, estas mudanças que têm lugar no interior de seu ser, misteriosamente, causam o enriquecimento ou o empobrecimento da totalidade mística da humanidade.
Assim como minhas ações contribuem para a edificação de minha personalidade, na medida em que são ações livres; assim também, apenas no exercer de minha liberdade, é que contribuo para a edificação da totalidade mística.
São as ações decididas livremente e dotadas de valor moral, positivo ou negativo, aquelas que têm conseqüências místicas. Os efeitos do mal ou do bem, praticados no interior do coração humano, não se limitam à pessoa que o praticou; suas influências estendem-se aos outros homens. Um ato bom ou mau tem conseqüência na totalidade mística; mas a responsabilidade por êste ato pertence exclusivamente a quem o praticou.
Embora a influência mística exerça-se no próprio interior do homem, não destrói sua liberdade; a destruição da liberdade seria a destruição da misticidade.
As inter-relações existentes entre os homens devido à sociabilidade e à historicidade permanecem externas: sòmente atingem o homem do exterior; aquelas devidas a misticidade, são totalmente interiores, realizam-se de interior a interior. As primeiras, conquanto externas, limitam e condicionam, a cognoscibilidade e a liberdade humanas; as últimas, embora interiores ao próprio ser do homem, as deixam inalteradas, porque a misticidade é realizada e fundamentada na relação de presença pessoal existente entre cada homem e o Criador.
A intensidade no existir místico, depende da intimidade da comunhão mística entre cada homem com seus semelhantes e com o Criador. Os homens que em sua existência atingem profundo misticismo por viver mais próximo ao Ser-nescessário são capazes de libertarem-se mais facilmente dos condicionamentos exteriores e, em conseqüência, atingem mais profundo conhecimento existencial e mais perfeita liberdade.
Nada é mais misterioso para o homem, entre os seres espácio-temporais, que o profundo interior de seu próprio ser, no qual são realizadas as relações místicas; a maneira pela qual estas se realizam, escapa-lhe a análise.