Pintura, Música e Poesia – Portais da Eternidade

1. Noções de Eternidade

“Platão exprimiu o paradoxo do presente instantâneo dizendo que nem é movimento nem repouso, está no meio de ambos, constitui o seu ponto de encontro” (Parm., 156d).
O instante de Kierkgaard é o momento decisivo da existência e da liberdade, não se refere à dialética do passado e do futuro no presente, mas ao corte do tempo pela eternidade na revelação divina. - Logos vol. IV 412.

O tempo transcorre ininterruptamente do passado para o futuro, é um vir a ser constante em que tudo passa. Nosso intuir dos acontecimentos temporais focaliza uma pequena passagem do tempo na qual estes acontecimentos se realizam, é o presente, passagem obrigatória entre passado e futuro.
Mas, mesmo êste presente que percebemos, já inclui passado e futuro, pois o tempo não para, o que é presente neste instante, no seguinte será passado e, tornar-se-á presente o que neste instante ainda é futuro. Por um momento concentremos nossa atenção neste instante fugidio.
O instante, limite intemporal no devir entre passado e futuro e o ponto, limite não-dimensional das dimensões espaciais, se confundem na origem dos acontecimentos espaço-temporais e aponta-nos para o eterno, onde as distancias e as durações são concentradas, mas não suprimidas.
É no instante, que se torna presença, que é momento de encontro entre movimento e repouso, que transcendendo ao tempo, penetramos na Eternidade.
Presença total e eterna, concentrando em si a imensidade espacial e a duração infinita, eis a Eternidade.

2. O Misticismo e os Portais da Eternidade

Em sua procura pelo contato com o transcendente, o místico (quer oriental, quer ocidental) pelos mais diversos meios, meditação, oração, ascese, ioga, etc., pretende a libertação dos entraves espácio-temporais; para penetrando o eterno, conseguirem a iluminação ou a visão beatífica que os coloque em contato com a divindade.
As descrições, repletas de figuras e simbolismo, das experiências místicas nos mostram o portal privilegiado para o eterno; para que nós, seres espácio-temporais, possamos mesmo antes de nossa morte ter uma pré-visão da eternidade. Haveriam outros portais que de certa forma confirmariam o testemunho dos místicos?
Certamente não são nas relações comerciais, nem nas sociais, nem nas políticas que encontraremos estes portais, nestes casos o que interessa é o dia a dia, a sobrevivência, a competição, o lucro e, para resumirmos numa única palavra o “ter”. Não, nestes casos não há lugar para o que é eterno, só para o que é passageiro.
Não encontraremos também portais na ciência e na tecnologia, onde o conceitual e o abstrato imperam, não o existencial; nem os encontraremos nos esportes, na arte comercial, na mídia, nestes casos o que importa é o superar-se, o ser vitorioso e o aparecer.
Vamos encontrá-lo na arte, erudita ou popular, não importa; mas, na arte pura que busca o belo em seu realizar-se e no seu transmitir. A arte quando pura, quando verdadeira supõe o intuir do belo pelo artista e, o intuir do belo na obra de arte pelo apreciador; quando se estabelece entre êste e aquêle uma relação de contemplação estética.
Se bem que todas as formas de arte, sendo autênticas, nos oferecem oportunidades para entrarmos em contato com o eterno, em nossas reflexões nos restringiremos à pintura, à música e à poesia.

3. Pintura – o captar do momento

Através da pintura ou da escultura, mesmo que esta seja surrealista ou abstrata, o artista ao contemplar a realidade, penetra muito além das aparências exteriores e capta o momento em que o objeto ou o acontecimento se realiza no mistério de seu ser, de seu realizar-se.
O momento, o instante é congelado e eternizado pelas formas e cores, trabalhadas pelas mãos do artista. Êste congelar na tela da realidade não lhe tira a vida, ao contrário prolonga-a e, aquêle momento que se perde no transcorrer do tempo, permanece na obra de arte.
Para melhor ilustrar e tornar mais compreensivo o afirmado acima, utilizarei uns poucos exemplos.
Na Renascença entre tantos artistas e tantas obras de arte, destaco a Mona Lisa de Leonardo Da Vinci. Todos já se encantaram com aquele sorriso enigmático da Gioconda que Leonardo tão bem captou e que permanece único, o sorriso traz vida a todo o quadro e nos coloca em contato com a alma da Gioconda expressa naquele sorriso. Ainda na Renascença, não poderia deixar de citar as esculturas de Michelangello, que parecem ter vida própria, desde a sublimidade e a dor estampada na Pietá, até o vigor e a majestade de Moisés ou de Davi.
Entre os impressionistas, o captar do momento fugidio era sua marca registrada. Pintavam ao ar livre, para melhor captarem as nuances da luz e da sombra nas diversas horas do dia. Monet, Gauguin, Renoir e tantos outros nos encantam com seus quadros, mas quero chamar a atenção para a “Noite Estrelada” de Van Gogh, neste quadro o artista penetra além da aparência para captar toda a magia de uma noite iluminada pelas estrelas. Ao contemplar êste quadro somos transportados para dentro dele e impregnados pela sua poesia.
Portinari nos mostra em seus quadros a realidade sofrida e heróica do caipira e do nordestino; seu quadro O Sertanejo nos faz, através do retrato do personagem, penetrarmos profundamente a alma do brasileiro pobre e esquecido, verdadeiro herói anônimo. Também em seus quadros com temática religiosa, Portinari dentro de uma atmosfera mística, abrasileira seus santos, dando-lhes fisionomia cabocla; êste fato se pode notar facilmente no São Francisco da Igrejinha da Pampulha. Portinari em seus quadros sempre nos transmite as realidades brasileiras, que êle tão bem soube retratar.
Picasso, impressionado com os horrores da guerra nos legou esta obra incomparável que é a Guernica. Nela não estão retratados os personagens deste acontecimento, mas todo o horror e o sofrimento que a guerra nos proporciona.
Com estes poucos exemplos penso que podemos concluir sermos capazes de intuir o instante que se faz eterno, ao contemplarmos uma obra de arte e nos relacionarmos com o artista em seu intuir e realizar de sua obra.
Pintores e escultores ao captar o belo, seja êste sublime, grandioso ou terrificante, eternizam o instante de sua intuição e os transformam em obras de arte. Assim como o pintor, o escultor também capta o momento em sua arte.

4. Música o captar do tempo através do som

Enquanto a pintura capta o momento e o eterniza; a música capta o próprio realizar-se, o próprio devir temporal coincidindo com o “élan vital”.
Ao escutarmos uma melodia, na medida em que conseguimos eliminar os ruídos exteriores e os pensamentos que nos distraem, somos levados a sentir o seu desenvolver-se criativo e o transcorrer do próprio tempo.
É êste sentir que nos faz entrar em sintonia com o dinamismo do eterno, sem as limitações e imperfeições que encontramos no dia a dia.
A música de Bach em sua pureza é a mais apropriada para nos colocar em contato com o eterno. Assim também a música religiosa, em particular o canto gregoriano, que pela sua própria motivação e característica, eleva nossa alma e nos liberta, mesmo que seja por instantes, das limitações temporais.
Ravel é outro músico que nos faz sentir a magia da passagem do tempo, principalmente se estamos a ouvir o seu Bolero que com o repetir de seu tema, num rítmo crescente faz-nos coincidir com a própria duração, que nos leva ao limiar do Eterno.
As músicas que desenvolvem temas, como é o caso das óperas, dividem nossa atenção entre o desenrolar do drama e a música propriamente dita. Mas, mesmo êste tipo de música pode nos colocar na presença do eterno, nos tornando participantes do drama cujo desenrolar assistimos e nos libertando de nosso próprio drama.
O balé nos coloca em contado com o produzir-se do movimento, mas do movimento passageiro, que enleva alma e a preenche com a calma de sua melodia.
Mesmo a música popular pode nos colocar nos portais da Eternidade. Pode levar-nos ao frenesi como os sambas carnavalescos; ou, ao transe, como no candomblé.
Fazendo-nos coincidir com o transcorrer do tempo e com o próprio criar-se dos acontecimentos a música pode nos proporcionar o sentirmos um pouco do eterno, enquanto permanecemos no tempo.

5. Poesia o relacionar-se com o Sagrado

- Avulta o comum reconhecimento do poder transformador da alma que a poesia detém (Górgias)
- O pensador diz o Ser, o poeta nomeia o Sagrado (Heidegger)

Entre todas as artes a que mais nos aproxima do Sagrado e do Eterno é a poesia, pois transforma a intuição em palavras, em comunicação, sem torná-la abstrata.
A poesia surge inicialmente como uma relação plena com o Sagrado, consistente na inspiração e na qual se funda tôda a sabedoria e conhecimento acessíveis ao homem.
Assim como o pintor lança mão de formas e cores e o músico do ritmo e dos sons para concretizar e transmitir sua intuição estética; assim o poeta lança mão das palavras e dos conceitos, mas sem se render ao pensamento abstrato e conceitual, nos transmite sua intuição por símbolos e figuras bem concretos.
Inúmeros são os poetas e diversos os seus estilos, em suas poesias encontram presentes traços de sua época, bem como a influência de seu ambiente cultural, mesmo quando quer contestar e inovar. Porém sempre o poeta, que é realmente poeta, transcende estas influências e torna-se o lugar privilegiado do revelar-se do Ser e do Sagrado.
Para ilustrar esta afirmação, não sendo possível e não estando em condições de uma análise mais ampla, apresentarei como exemplo apenas dois poetas, minha mãe e Cruz e Souza.
Dentre as poesias de minha mãe escolhi duas, que transcrevo abaixo:


SER POETA
Minha primeira poesia – 1932
Rian*

Ser poeta é descrever a natureza
Toda ornada de formosos pombos
Da terra, do mar, do firmamento.
Tudo quanto existe ou que supomos
Ser poeta é bordar em pontos negros,
A glória da vida já passada:
É descrever a face tão mimosa,
Da amada e bela enamorada.
É, descrever a simples inocência,
Traçar do amor bela fantasia,
Ser poeta é viver na ilusão.
É, cantar a voz da serenata,
Ou de uma ave que perdera o ninho,
Ser poeta é exprimir o coração.

*) Nair Chagas Nithack, poetisa campineira nascida em 6 de julho de 1914, falecida na mesma cidade em 3 de outubro de 2001.Suas poesias são inéditas.
Esta poesia, a primeira escrita por minha mãe, mostra-nos a força da intuição, pois sua escolaridade não ultrapassou o quarto ano primário, embora compensada por uma serena e profunda sabedoria alcançada por uma vida de muita luta, sofrimento e dedicação. Tudo isto eu relato para mostrar que ao poeta, o conhecimento e a cultura livresca não são essenciais, o importante é a intuição que acontece no transcorrer da vida, principalmente daquele que ama. Quanto a poesia, não necessita de análise, ela fala por si própria.

T U D O

O que é tudo?
Talvez um nada
ao ver de outro alguém
Um sonho, uma ilusão,
que aquece um coração:-
quando se vai,
deixa um vazio
tão frio
Deixa uma lágrima
que corre sem querer,
mas, ninguém procura ver
nem entender.
Cada ser tem seu tudo
que é sempre um nada
para outro alguém

Nesta segunda poesia vemos como a intuição poética pode penetrar no fundo da alma humana e nos revelar até mesmo realidades da essência do homem.
Como meu último exemplo sobre a poesia, enquanto Pórtico da Eternidade, vou transcrever, sem comentar, o soneto “Sorriso Interior”, talvez o mais belo da língua portuguesa, deste gênio da poesia simbolista Cruz e Souza. Basta ler o soneto para se compreender porque a poesia tem o poder de transformar a alma, como disse Gorgias e, porque o poeta nomeia o Sagrado, como afirma Heidegger.

Sorriso Interior

Cruz e Souza
O ser que é ser e que jamais vacila
Nas guerras imortais entra sem susto
Leva consigo este brasão augusto
Do grande amor, da grande fé tranqüila.
Os abismos carnais da triste argila
Ele os vence sem ânsias e sem custo...
Fica sereno, num sorriso justo,
Enquanto tudo em derredor oscila
Ondas interiores de grandeza
Dão-lhe esta glória em frente à Natureza
Esse esplendor, todo esse largo eflúvio.
O ser que é ser transforma tudo em flores...
E para ironizar as próprias dores
Canta por entre as águas do dilúvio

Enquanto o filósofo e o cientista para transmitirem suas teorias, o fazem após muito estudo e pesquisa e utilizando conceitos e raciocínios nem sempre claros para os não familiarizados com seus vocabulários; o poeta em sua intuição capta a realidade e a transforma em versos, comunicando-a a todos os seus leitores.
A intuição poética é simples, imediata e expontânea, nela o ser e a natureza revelam seus segredos. O poeta penetra a realidade sem necessitar de raciocínios, que de certa maneira a deformariam, pela interpretação subjetiva do homem à própria realidade.
A realidade captada pela poesia é a realidade do Sagrado, que desvenda os mistérios mais profundos do Ser e dos seres, do homem e do Universo.
O poeta colocando-se aberto e na presença do mistério, através de suas poesias nos revela o Sagrado e coloca-nos nos portais da Eternidade.