O Eu e a Intersubjetividade - O Diálogo

1. A existência do homem está repleta da presença do homem. O homem e o outro homem, sendo essencialmente semelhantes, permanecem um para o outro encerrados no mistério de sua individualidade pessoal.
Um homem permanece extranho a outro homem, enquanto com ele não dialoga.
É o diálogo que permite o contato profundo de ser para ser, de pessoa para pessoa. É através do diálogo que o homem revela-se ao outro, é ainda através do diálogo que ele conhece o outro, que pode penetrar em sua misteriosa personalidade.
Mesmo o mais superficial diálogo permite aos homens revelarem e conhecerem, mùtuamente, alguns aspectos de suas personalidades. É, no entanto, através do diálogo íntimo e profundo, que o homem revela-se ao outro, transmitindo as particularidades de seu pensamento, tornando-o conhecedor de suas inclinações, de suas paixões, de seus vícios e de suas virtudes; da mesma forma, quanto mais íntimo e profundo for o diálogo, mais o homem conhece os elementos que constituem a personalidade do outro, penetrando além das aparências exteriores.
O diálogo é essencialmente criador e transformador; através dêle o homem transmite realidades interiores e, pensamentos pessoais que enriquecerão o outro; dêste recebe também novas experiências e novos pensamentos, que assimila tornando-os seus. No diálogo, o homem e o outro se enriquecem mùtuamente. Ambos, transformam-se, assimilando no profundo do seu ser, um pouco do ser do outro.
Para que o diálogo seja profundo, não há necessidade de multiplicarem-se as palavras, às vezes nem mesmo há necessidade de palavras: um sorriso, um gesto, um olhar de uma mãe, de uma noiva ou de um amigo pode conter mais significado e mais revelações que todo um discurso ou uma conferência.
O homem pelo diálogo, penetrando profundamente no mistério do outro, não o desvenda, respeita-o. Quanto mais ìntimamente o homem conhece e compreende o outro, mais sabe que êste, no mais profundo de seu ser, permanece impenetrável. Pelo diálogo, o homem expressa seus pensamentos e seus sentimentos, mas o faz de modo imperfeito. Mesmo quando quer abrir-se totalmente ao outro, não o consegue; apenas determinados aspectos de si são revelados, o total conjunto de sua personalidade permanece-lhe interior.
Os pensamentos, os desejos, os sentimentos são vividos pelo homem; quando transmitidos, não conservam tôda sua riqueza, tôda sua originalidade.
A mais feliz expressão de estados interiores da alma humana permanece muito aquém da realidade dêsses estados. Quando o outro recebe uma comunicação, repensa-a segundo seu próprio modo de ser. Em virtude da incapacidade do homem em transmitir perfeitamente seus estados interiores e, também de captar em tôdas as suas nuances a comunicação do outro, permanece incompreendido e o outro, misterioso.
O diálogo propicia a aproximação e a união íntima entre os homens, porém os homens conservam-se exteriores uns aos outros e, nem o mais perfeito diálogo é capaz de desvendar o mistério da personalidade do homem. Ao contrário, quanto mais o homem compreende o outro, menos o compreende; quanto mais penetra em seu íntimo, mais encontra o mistério.

2. Não é apenas com o outro que está próximo que o homem dialoga. O diálogo se estabelece também entre homens situados a grandes distâncias no espaço e no tempo. A filosofia, a ciência, a arte, a religião e o heroísmo, propiciam ao homem diálogos que ultrapassam as barreiras espácio-temporais.
O filósofo fala através de sua filosofia, através de gerações penetra o ser de discípulos e de adversários, ensinando-lhes, enriquecendo-lhes, propiciando-lhes elementos para seu desenvolvimento interior. E êstes lhes respondem com sua adesão ou com sua crítica, uns completando ou esclarecendo pontos obscuros de sua obra, outros tentando refutá-la ou apresentando diferentes respostas a problemas por ele tratados.
O cientista, não importando qual sua especialidade, observa e analisa o objeto de seu trabalho, descobre novas realidades ou elabora novas teorias. Estas são transmitidas ao homem, é a palavra do cientista que é pronunciada, é uma parte do cientista que é comunicada. O homem responde estudando, aplicando, utilizando e desenvolvendo suas descobertas e teorias.
O artista transmite seus sentimentos, seu coração, sua alma através de sua arte. A arte em si é uma forma de diálogo. Somente o amor pode atingir o homem mais profundamente que a arte. Ao contemplar um quadro ou uma escultura, executar uma sinfonia, assistir ao teatro ou ao cinema, ler uma página literária ou contemplar obras arquitetônicas, o homem é invadido por sentimentos análogos àqueles que inspiraram o autor quando o executou e, penetra profundamente em seus pensamentos e em seus sentimentos, conhecendo suas alegrias e tristezas, fracassos e triunfos. Através do autor, conhece aspectos de sua época, ambiente, nação e sociedade.
A música de Villa-Lobos, a pintura de Portinari ou os livros de Euclides da Cunha transmitem a alma brasileira; Dante, Rafael e Michelangelo mostram a Itália; Cervantes é o arauto da Espanha, Camões, o de Portugal; as Catedrais Góticas retratam a Fé medieval; a alma da Grécia permanece no Parthenon ou na Vênus de Milo; Brasília simboliza a esperança e o caminhar de um povo que vive no futuro; Stravinsky, Prokofief, Dostoievski transmitem diferentes aspectos da alma russa; incontáveis e diferentes artistas falam através de sua arte da França, da Alemanha, dos Estados Unidos, do Oriente e do Ocidente, do passado, do presente e do futuro.
Um quadro de Rembrandt, uma fuga de Bach ou a Nona Sinfonia de Beethoven, atingindo a perfeição artística, penetram a alma do homem e transformam-na, elevando-a acima do aparente e colocando-a em contato com a própria essência do belo.
A pintura de Van Gogh ou de Rouault, a poesia de Cruz de Souza ou de Francisco de Assis, colocam-se entre as mais perfeitas e profundas comunicações de estados de alma conseguidas pelo homem.
Para quem a sabe compreender, a arte é um diálogo vivo, é um contato de alma à alma, de interior a interior. Os sons, as cores, as formas, as palavras são condições e meios para a expressão da arte; o essencial é a mensagem, é a poesia, e essa é espiritual.
O eco das palavras dos líderes religiosos atravessa as gerações. Em resposta, os fiéis aceitam e praticam suas doutrinas, imitam suas virtudes, cultuam suas memórias.
Maomé, Buda, Confúcio, Moisés, São Bento, São Francisco e Santo Tomás, entre outros, falam ao fundo da alma de milhões de homens e estes aceitam sua palavra e a respondem, seguindo seus ensinamentos e tornando-se seus discípulos, séculos após sua morte.
Os heróis falam através de seus atos, os homens os homenageiam, os admiram e os imitam. Um ato heróico comunicado ao homem, pode transformá-lo, infundindo em sua alma sentimentos nobres e tornando-o capaz de novos heroísmos.
O diálogo propiciando ao homem o contato com o outro, enriquece-o com novas experiências e novos estados de que pelo mesmo lhe são comunicados.
O diálogo é criador e transformador. Criador enquanto faz nascer novos pensamentos, novos sentimentos, novas realidades interiores; Transformador, quando, colocando o homem frente à mensagem do outro, pode transformá-lo mudando a direção de sua vida e o conteúdo de seu pensamento.

3. Permitindo ao homem um maior conhecimento do outro, colocando-o frente a novas situações, enriquecendo-o e transformando-o, o diálogo leva também a um maior conhecimento de si próprio.
O homem é para si mesmo tão desconhecido, tão misterioso quanto o outro. Para penetrar-se, para conhecer-se necessita o homem indagar o seu próprio ser, Precisa dialogar consigo mesmo. É um diálogo todo interior, no qual o homem e o outro não são mais que uma única pessoa. A êste diálogo interior chamamos reflexão.
É refletindo sôbre suas realidades interiores que o homem se encontra. O diálogo proporciona ao homem elementos para a reflexão. A reflexão sobre esses elementos leva o homem à presença de si próprio. O homem constantemente enriquecido e transformado através dos contatos com o outro e com o mundo, necessita conhecer-se e, para isto, reflete sobre sua própria pessoa. Conhecendo-se melhor, melhor pode conhecer o outro que lhe é essencialmente semelhante, embora exterior e com distinta personalidade.
A reflexão de seus estados interiores, não só propicía-lhe um melhor conhecimento de si, como lhe permite assimilar e tornar seus os conhecimentos, sentimentos, dores e alegrias que lhe são transmitidos do exterior. Sem a reflexão, sem o diálogo interior, as mensagens do outro permaneceriam exteriores e artificiais, o diálogo permaneceria estéril.
Para a compreensão do outro, é necessária a compreensão de si; para a compreensão de si é necessário o contato com o outro. É a mensagem do outro, que leva o homem à reflexão. É a reflexão que faz do homem outro a si mesmo e, assim o permite conhecer-se. Refletindo profundamente o homem invade sua alma e, aí encontra um complexo de virtudes e vícios, de qualidades e de defeitos, perfeições e imperfeições. Quanto mais o homem reflete, mais descobre facetas e nuances em sua personalidade, que até então não cogitava possuí-las. O esclarecer de um ponto obscuro, leva o homem a outros pontos obscuros. Quanto mais o homem penetra em seu mistério, mais denso torna-se êsse mistério.
O homem que reflete é capaz de compreender o outro, porque a reflexão torna-o humilde. Somente uma pessoa humilde é capaz de penetrar profundamente o outro e respeitar o seu segredo e, apenas respeitando o mistério alheio, pode-se conhecê-lo. Aquêle que julga conhecer o outro, não o conhece, porque nem a si próprio se conhece. Aquêle que sabe ser o outro, no mais recôndito de seu ser, impenetrável; conhece-o, compreende-o e respeita-o, porque sabe que o outro, assim como ele próprio, possui em si um complexo de estados interiores que formam um todo único e misterioso.
O homem somente pode atingir em si e no outro, aspectos de suas personalidades. O homem não consegue um conhecimento completo do homem; o homem para o homem permanece sempre um mistério.