Morte – Fracasso ou Realização do Homem?

1. – Saído da escuridão misteriosa do nada, caminhando no luminoso mistério da vida, o homem aproxima-se instante a instante, ininterruptamente, do imperscrutável mistério da morte.
Em seu existir, angustia-se continuamente pela presença terrificante da Morte, pela presença da destruição em seu próprio ser, que ameaça lança-lo novamente no abismo do não-ser.
A destruição constata-se por toda a parte; todos os seres intra-mundanos são destrutíveis, todos os homens, mortais. Esta destructibilidade universal, não é suficiente para que se compreenda ou se aceite a mera possibilidade da morte daqueles que amamos e da própria morte.
A morte de estranhos, principalmente quando ocorridas em desastres ou tragédias, podem trazer-nos tristezas, mas logo deixamos de considerar o acontecido, pois estes indivíduos são estranhos e deles nunca tivemos conhecimento.
Quando, porém somos informados da morte de um conhecido ou de um amigo, nos é difícil acreditar. Recordamo-nos de nossas relações com o falecido, pensamos nas vezes em que havíamos dialogado, nos trabalhos e tarefas que juntos havíamos executado, etc. Não, nunca havíamos percebido a presença da morte em seu ser; sabíamos que era mortal, mas acreditávamos que era imortal. Sendo a amizade superficial, talvez nem mesmo sofra com a sua morte e bem depressa o esqueça; é o mesmo como se nunca tivesse existido. Quantos são aqueles que mesmo sem terem morrido, são eliminados de nossa existência, simplesmente porque nosso contato desaparece ou perde significado?
Quando, no entanto a amizade que temos com aquele que morre é profunda e existencial, sua morte deixa um vazio em nossa alma. Sua recordação permanecerá bem viva durante todo o nosso existir. Sua ausência nos acompanhará, como sua presença nos acompanhou enquanto vivo.
Aqueles que perdem um ente querido, não mais permanecem os mesmos. A dor e a saudade o acompanharão por toda a parte e em todas as ocasiões. O órfão permanece sempre órfão; a falta do pai ou da mãe é mutilação em seu próprio ser. Não, nunca se esquece daqueles a quem queremos bem; por esta razão preferimos ver nossos entes queridos sofrendo no hospital, que descansando no seio da Morte.
A morte de um homem, nunca é a morte de um indivíduo qualquer, sempre é a morte de alguém caro a outro alguém. Mesmo aquele que vive solitário, sem ter ninguém lhe querer bem, quando morre é sempre uma pessoa que morre.

2. – No transcorrer da existência, dia a dia atravessamos novas experiências, realizamos novas missões, enriquecendo-nos e dotando nossa existência de maior significado.
Nossa participação na existência é cada vez mais intensa, entretanto, cada dia que passa, aproximamo-nos do instante fatal de nossa morte.
Conscientes da inevitabilidade da morte, não obstante, esta parece mais distante do que de quando nascemos. Quando bebê, nossa participação na existência reduzia-se quase que ao existir orgânico; hoje, nosso existir inclui tudo o que construímos em nosso passado, tudo o que projetamos construir no futuro.
Sendo o existir do homem um contínuo realizar-se, quando a morte vier a ceifar-lhe a existência temporal, muito de seus projetos permanecerão a serem realizados. É triste pensar que um trabalho que nos é caro poderá ser interrompido pela morte.
Existindo no presente, temos a impressão de que todo o passado se reduz a sonho, de que todo o futuro nunca se realizará. Isto é verdade, principalmente com relação aos instantes limites do nascimento e da morte. Mesmo quando na presença da morte de outrem, parece-nos que nossa situação atual é a situação definitiva e que nunca conheceremos a morte. Entretanto, deixar-se embalar por essa impressão, com a finalidade de afastar a idéia trágica da morte e viver como se fossemos imortais, seria viver artificial e inautenticamente.
Devemos assumir a realidade inevitável da morte, tendo-a sempre presente em nosso viver. Sòmente cônscios de sermos mortais, somos capazes de viver autenticamente; a possibilidade sempre presente de vir a morrer no próximo instante reflete-se no nosso agir.
Assim como livre e conscientemente devemos assumir nossa existência, embora nem o existir, nem as condições nas quais devemos existir, dependam de nossa vontade; assim também, livre e conscientemente, devemos aceitar a morte, embora o morrer e as condições pelas quais irá ocorrer nossa morte, também não dependam de nossa vontade.
Ao assumir a morte, devemos relacionar todo o nosso agir com a mesma, devemos prepararmo-nos para morrer. O que não impede o desejo de sobreviver.

3. – O desejo de perpetuar-se na existência é desejo universal. O homem alcança sucesso parcial no atualizar esta aspiração.
Uns dotados de gênio excepcional transformam em obras primas um pouco de seu ser. Assim, é a alma de Platão que sobrevive em seus Diálogos; Palestrina, Mozart, Verdi, Wagner permanecem vivos em suas músicas; Da Vinci, fra Angélico, Gauguin transformaram o seu ser em cores e formas; muitos, cujos nomes perderam-se na noite dos tempos, permanecem em seus trabalhos. Mesmo quando as obras são destruídas, algo permanecerá no trabalho de outros artistas, que nelas foram buscar inspiração.
Outros se perpetuam na existência através de teorias e de descobertas que vem a contribuir para o progresso da humanidade. A cultura atual não seria a mesma sem o trabalho de pensadores como Heráclito, Pascal ou Kant; sem as descobertas de Pitágoras, Copérnico ou Newton.
Ramsés, David, Aníbal, Napoleão, imortalizaram-se através de seus feitos políticos ou de suas vitórias militares. As realizações de um chefe de Estado e os resultados de uma campanha militar freqüentemente modificam o rumo da história.
Mas, para que uma obra artística seja realizada, um novo pensamento transmitido ou uma descoberta científica alcançada, o artista, o filósofo e o cientista dependem de muitos outros. Dependem daqueles por meio dos quais receberam a existência, seus pais; daqueles que contribuíram para sua educação; dos que trabalhando no campo ou nas fabricas, lhe propiciaram o alimento para seu corpo e, os instrumentos e materiais para a sua obra.
O Chefe de Estado necessita dos funcionários para realizar seus planos; os líderes militares necessitam de soldados para vencerem suas batalhas. Todos os homens contribuem em determinada maneira para a construção da Civilização. Assim os homens permanecem de certo modo na existência, através de sua contribuição para o desenvolvimento da humanidade.

4. – Mas, esta sobrevivência anônima no seio da História e da Civilização, não é a sobrevivência da pessoa humana. E, além disso, toda a humanidade e todo o Universo, parecem estar inevitavelmente destinados a total destruição.
Para aquele que morre, a destruição do Universo é realizada no preciso momento de sua morte, salvo se de certa maneira misteriosa, sobreviver na integralidade de seu ser-pessoal. Da mesma forma, a humanidade apenas permanecerá existente se a mística união de participação na essência divina, for preservada após a sua extinção no Universo espácio-temporal.
Apenas através da preservação de seu ser como ser-pessoal e como ser-místico, o homem sobreviverá à própria morte. Enquanto ser-pessoal, a unidade interior de seu ser é conservada, assim como a unidade indissolúvel de corpo e alma; bem como toda sua existência interior é preservada na pessoa que está a construir com o atuar de sua liberdade. Enquanto ser-místico, a relação entre o seu ser e a unidade mística de toda a humanidade é preservada ao participar da própria existência divina.
Porque ser-místico, em relação pessoal com Deus. Acredita e espera sobreviver fora do tempo, na totalidade integral de seu ser.
Sem esta Esperança, a realidade inevitável da própria morte, o lançaria na angústia e no desespêro. A existência perderia significado e tôdas as tentativas em perpetuar-se estariam destinadas ao fracasso. Apenas recusando a uma existência autêntica, poderia escapar ao tédio de viver sem razão para viver. Melhor seria o não ter consciência do existir, existindo irracional e instintivamente, do que existir artificial e inautenticamente.

5. O homem aspira à imortalidade; mas o homem não quer a permanência indefinida na dimensão espácio-temporal e nas circunstancias de sua vida atual. A imortalidade almejada pelo homem realizar-se-ia na eternidade e sem as limitações da vida atual. Para esta existência, vivida no tempo, nada mais natural que um término que acontece com a morte.
Neste ponto gostaríamos de indagar: -É a morte o fracasso ou a realização do Homem?
Se considerarmos sua imprevisibilidade e ao mesmo tempo sua inevitabilidade; se considerarmos a angústia e o desespero dos condenados a morte, pela lei ou por doença; se considerarmos as inúmeras vezes em que um projeto é interrompido pela morte; se considerarmos ainda, a falta de quem morre e o vazio que é deixado no coração dos que o amam, por estas e por muitas outras razões poderíamos afirmar que a morte é o fracasso do homem.
Mas, se observarmos a morte de um mártir, seja qual for sua religião ou ideologia; se observarmos a morte de quem, após uma vida de trabalho e de devotamento aos seus e ao próximo, cerra os olhos com a sensação de dever comprido; se observarmos a morte de quem cansado pelos anos já vividos ou pelos sofrimentos enfrentados, espera sereno o descanso merecido; se observarmos a morte de heróis públicos ou anônimos, então poderemos dizer que nestes e em outros tantos casos a morte não se tornou o fracasso, mas a máxima realização da vida e do homem.
Fracasso ou realização da pessoa humana depende exclusivamente de quem morre, da pessoa que êle criou livremente com o que recebeu durante tôda sua vida.