O Eu e a Intersubjetividade - O Estruturar e o Criar da Personalidade

1. – Tendo sido lançado na existência em determinada situação e, condicionado por fatores internos e externos à sua própria natureza, o homem assume o seu ser e constrói a sua personalidade.
Ser-pessoal, o homem não é simples resultado de seus condicionamentos; é o que está realizando e edificando com os elementos que lhe são fornecidos por êstes mesmos condicionamentos.
Seria engano tentar descobrir-se, descartando do que de certo modo lhe é exterior e acidental: chegaria apenas a conceitos abstratos. É no existencial que deve encontrar-se.
A abstração do que em seu ser procede dos seres que lhe são exteriores, o lançaria no vazio do não-ser frente à sua absoluta contingência, pois sua própria realidade espírito –corporal e sua própria existência procedem de outros seres.
O considerar sua absoluta contingência como a medula de seu ser, é reduzir seu próprio ser ao nada.
Localizar-se em sua espírito-corporidade, abstraindo inclusive de sua própria existência, seria cair outra vez no abismo do nada. Sem existir, seria simples possibilidade; não, o ser que é. Sua existência é essencial ao seu próprio ser; caso deixasse de existir, não mais seria. O que não significa que é necessário que exista; mas, desde que é, existe.
Aceitar a própria existência e afirmar-se como ser espírito-corporal existente, não seria suficiente para se libertar do vazio e da indeterminação. Evidentemente que seria uma “coisa”, mas qual a diferença entre um “nada” e uma “coisa”? Sem o contato com o mundo e com os homens, em seu espírito permaneceria o vazio. De que adiantaria a capacidade para conhecer e a capacidade para agir livremente, sem as relações que lhe permitam atualiza-las?
No considerar sua personalidade, não pode deixar de considerar as situações em que foi lançado em seu existir e que permite o determinar-se e o libertar-se do vazio, trazendo significação ao próprio “eu”. Ser espírito-corporal, espácio-temporal, intramundano, social e histórico, consciente de suas possibilidades e limitações, livre para assumir sua existência, o homem é o que está construindo com o que lhe foi dado.
É verdade que sua recusa em aceitar a situação em que foi lançado, não impede de que continue a existir nesta mesma situação. A aceitação ou recusa de seu ser concreto e existente numa determinada situação, determina o seu existir interior, decidindo seu ser-pessoal.
É neste sentido que o homem pode dizer-se criador, ou melhor, co-criador de si mesmo, de seu próprio ser. Utilizando o que recebeu no instante de sua entrada na existência, o homem deve, penetrando em si mesmo, compreender-se e livremente decidir o seu agir no contínuo criar de seu próprio ser.
As ações individuais são decididas pelo próprio homem, embora condicionadas e limitadas por inúmeros fatores. Quando age, difícil é saber, em que extensão esta decisão foi devida a fatores condicionantes.
O “eu-pessoal” distingue-se do “eu-psíquico”. Êste inclui todas as influências provenientes do exterior ou produzidas no interior, conscientes ou inconscientes, livres ou determinadas; o “eu-pessoal” é o resultado do agir livre.
A suprema decisão de assumir ou recusar seu próprio ser é uma decisão realizada continuamente, durante o transcorrer de toda a existência, na aceitação ou recusa das diversas situações e na livre escolha do agir.
Em sua atuação exterior, o homem pode ser determinado por fatores externos a sua vontade. Muitas vezes, é forçado a agir como não quer. No construir de seu “eu”, é totalmente livre, embora seja através de seus atos que o construa, porque êsses mesmos atos, apenas contribuem para o seu enriquecimento ou empobrecimento, na medida em que suas realizações dependem de sua liberdade.
Sua responsabilidade em relação a seus atos pode ser limitada; em relação à sua pessoa, é absoluta.

2. – A personalidade propicia ao homem unidade interior e existência pessoal. Sem personalidade, os homens permaneceriam exteriores uns aos outros e, suas relações, reduzir-se-iam a simples relações mecânicas, vazias de significado. O agir humano encontraria sua fonte nas leis mecânicas ou no instinto animal; sua liberdade reduzir-se-ia em decidir êste determinado ato, sem qualquer conseqüência em seu próprio ser. Melhor, a Liberdade extinguir-se-ia, pois Liberdade pressupõe uma Pessoa capaz de atuar livremente.
Ser-pessoal, a existência do homem lhe é própria. Não apenas um homem entre os outros; mas uma pessoa, o que equivale a dizer que, embora semelhante aos demais e dotado da mesma natureza, é um ser singular em que a essência humana é realizada de maneira toda particular no transcorrer de seu existir.
A Pessoa unifica e resulta da espírito-corporidade, mundanidade, sociabilidade e historicidade. A Pessoa é fonte do agir. Ao agir produz efeitos no exterior e na própria personalidade de quem age; os efeitos exteriores se esvaecem com o tempo; os efeitos produzidos na própria personalidade permanecem para sempre.
Produzindo a unidade interior, a personalidade é incomunicável e impenetrável. Pode-se transmitir pensamentos e sentimentos, pode-se ainda comunicar facetas da própria personalidade; em sua totalidade, porém, esta não pode ser comunicada; se isto fosse possível, a própria individualidade se perderia e a pessoa seria destruída.
Porque ser-pessoal, o homem é totalmente outro aos demais homens. Cada pessoa é todo um universo à parte; a sua semelhança essencial não impede que cada homem possa ser considerado como possuindo em si uma essência pessoal, totalmente diversa da essência de cada outro homem.
É a incomunicabilidade e a impenetrabilidade no mais profundo da personalidade humana, que garante ao homem uma existência que lhe é própria, embora dependente de outros seres.

3. – Ser-pessoal, existindo entre seres pessoais, o homem é ao mesmo tempo solidário e solitário.
A solidariedade é conseqüência da sociabilidade e da capacidade de comunicar-se e de receber comunicações. Em seu existir, a comunicação com seus semelhantes é constante e indispensável para a vida. Os pensamentos, os sentimentos, os projetos, etc. são transmitidos mùtuamente; assim, os homens co-participam suas realidades interiores, tornando mais fácil vencer os obstáculos e mais alegres, as vitórias.
Sendo solidário, é capaz de colaborar com seus semelhantes, para a realização de uma mesma obra; capaz, também, de tornando-se consciente de problemas do próximo, compreendê-lo e ajudá-lo.
Através da solidariedade participa das alegrias e das tristezas do próximo, Realidades que para êle nada significam, passam a ter significação por significar algo para outro homem.
No contato com o Universo, o homem conhecendo-o melhor, atribui aos seres exteriores, significações que são próprias ao seu modo de ser; sendo solidário, é capaz de tornar outros homens interessados nos mesmos seres e, de certo modo transmitir a eles o significado por êle atribuído aos seres exteriores. Assim, ao contemplar uma cascata d’água, o engenheiro vê a possibilidade de se construir uma usina hidroelétrica, o agricultor pensa em aproveitar a água para a irrigação das terras marginais, o poeta, o pintor e o músico encontram inspiração para um novo poema, quadro ou canção; enfim, o viajante considera o recanto agradável para passar uma tarde e descansar; para cada um dêsses homens, a cascata possui um diferente significado; mas sendo o homem solidário, cada qual encontra na cascata um pouco da significação a ela atribuída pelos outros homens.
Não obstante as relações que lhe permite viver solidário ao seu semelhante; sua incapacidade em comunicar seu ser em sua totalidade e, em penetrar no mais profundo do ser de seu próximo, lança-o frente à solidão.
Muitas e muitas vezes, no transcorrer de sua existência, ao encontrar-se frente a problemas que lhe são vitais, não consegue fazer-se compreender, nem consegue obter o auxílio que necessitaria ou é deixado abandonado às suas próprias fôrças para solucioná-los.
As decisões mais importantes da existência humana, inclusive aquelas em que tôda a eternidade pode vir a ser decidida, são resolvidas na solidão. As circunstâncias exteriores e o auxílio dos semelhantes podem fortalecê-lo ou enfraquecê-lo, quando frente a uma decisão vital; mas é o próprio homem, e apenas êle, que deve decidir.
A solidão não é apenas evidente quando encontramo-nos afastados dos demais homens; ao contrário, ela é mais evidente, quando dialogando com os mesmos, procurando fazer-se entender; mas, o pensar e o sentir são interpretados de maneira totalmente diferente.
A solidão, entretanto, apresenta também um aspecto profundamente positivo. Deixado abandonado consigo próprio, o homem tem oportunidade de superar-se, de vencer suas dificuldades pessoalmente, sem estar condenado a viver fatalmente na dependência dos outros.
É na solidão que o homem encontra a possibilidade para seu crescimento espiritual e o enriquecimento de seu ser-pessoal. É verdade que infelizmente, muitos são aqueles que, deixados em solidão, perdem a batalha pela sua própria auto-realização e sucumbem aos obstáculos que encontram, despersonalizando-se em lugar de personalizar-se. Porém êste é um risco que torna ainda mais digna a vitória do homem na luta de sua afirmação.
A solidariedade e a solitariedade são dois aspectos da pessoa humana que devem complementar um ao outro e não destruírem-se mutuamente.
Quando na solidão o homem não consegue encontrar solução para o que o aflige, se angustia e, pode mesmo desesperar-se; mas quando encontra a solidariedade de outro homem, constata a presença do amor e renasce-lhe a esperança que renova suas forças, afastando a angústia e o desespero.