Espírito - Corporidade

Para alguns, o verdadeiro ser do homem encontra-se em seu espírito, em sua alma, sendo o corpo apenas um invólucro a ser descartado após a morte; outros afirmam que o corpo é todo o homem e os pensamentos e outras atividades ditas espirituais são causadas pelo cérebro; a alma não passa de uma fantasia para consolar o homem em vista da morte e dar-lhe uma falsa esperança de imortalidade; outros ainda sustentam ser o homem um espírito encarnado, um todo em que o espiritual e o material participam. Partindo desta última posição, faremos as seguintes considerações:

1. Essencialmente corpo e alma, o homem busca o espiritual, é atraído pelo material. Consciente e livre, porque espírito; instintivo e condicionado porque matéria. 
Intuitivamente, a realidade da alma é evidente; abstratamente pode-se deduzi-la da capacidade cognitiva ou da volitiva. 
A matéria é, e permanece exterior à matéria. Um ser material não pode penetrar o interior de outro ser material. 
Entre os seres materiais pode ser estabelecido contato físico, mas permanecem impenetráveis uns aos outros; a íntima união entre elementos químicos, provoca a destruição dêsses elementos, fazendo surgir um novo elemento. No ato cognitivo, o homem penetra os seres exteriores, aumentando o acervo dos seus conhecimentos; os objetos conhecidos permanecem inalteráveis. 
Pela abstração dos dados fornecidos pelos sentidos, o homem forma em sua mente o conceito ideal do objeto; êste conceito, sendo imaterial, não pode ser realizado pela matéria. Sòmente o espiritual é causa adequada para produzir o espiritual. 
Do mesmo modo, um ser material, não sendo capaz de conhecimento consciente, não é também capaz de liberdade. 
O ato livre supõe uma decisão tôda interior, sôbre elementos tornados conscientes; incapaz de penetrar os seres exteriores, a matéria é incapaz, também, de voltar-se para o seu interior. O ato volitivo, sendo consciente e interior, supõe o espiritual.


2. O agir não é exclusivamente espiritual; pelo próprio corpo é também material. É através do corpo, que o homem entra em contato com o mundo exterior. 
A abstração e o raciocínio estão condicionados ao conhecimento sensitivo; a intuição supõe a presença, a lembrança ou a imagem do objeto intuído; o cérebro é condição “sine qua non”, para o conhecer. Assim sendo mesmo nosso auto-conhecimento está condicionado a nossa corporidade. 
Todos atos espirituais são de certa maneira corporificados: atos puramente orgânicos, recebem um certo valor espiritual. 
A alma é espiritual, simples, inextensa, indestrutível etc., o corpo material, composto, extenso, destrutível, etc. Por natureza radicalmente opostos, corpo e alma estão unidos no ser de cada homem. 
Esta união é tão íntima e perfeita que, corpo e alma, cada qual conservando suas próprias características, formam um ser único, uno e indivisível . Alma e corpo não podem ser separados, a separação causaria a destruição do ser humano. 
O ser humano é, essencialmente, uma unidade espírito-corporal; não um composto de espírito e matéria. 
O homem não é nem unitário, nem múltiplo; em seu ser a multiplicidade resolve-se na unidade. Verdadeiramente múltiplo, constituído de alma e corpo; verdadeiramente uno, espírito e matéria essencialmente unidos e inseparáveis.


3. Esta íntima união tem, em conseqüência, mútuo condicionamento entre o elemento material e o elemento espiritual. As faculdades da alma precedem em dignidade as do corpo. As necessidades do corpo devem ser saciadas para que a alma possa atuar. 
O corpo é um complexo orgânico; nêle cada órgão exerce uma função específica. Para que goze de perfeita saúde, é necessário que todos os órgãos funcionem corretamente; a irregularidade no funcionamento de um único órgão pode causar distúrbio em todo o organismo. 
A disposição interior, a capacidade de pensar e de agir, dependem do estado de saúde; quando doente, o intelecto e a vontade não possuem o mesmo vigor. 
Debaixo de tensão nervosa, a compreensão dos fatos torna-se muito difícil e a vontade, cega e enfraquecida. As doenças nervosas chegam mesmo a neutralizar totalmente o conhecer e o querer 
Nem todos os atos humanos são racionais e conscientes; muitas vezes, o agir é instintivo e inconsciente. A repetição constante de uma mesma ação, os instintos de auto-conservação e preservação da espécie, etc. são responsáveis pela automatização de muitos dos atos humanos. Automático também é o funcionamento dos órgãos. 
O sexo desempenha importante papel em nossa vida. O homem e a mulher, em sua vida material ou na espiritual, possuem características próprias, que os distingue orgânica, psicológica e sentimentalmente entre si.


4. A interação entre corpo e alma é percebida, com maior evidência, através dos sentimentos e das paixões. 
A alegria e a tristeza; o amor, o ódio e o ciúmes; a fé e a esperança; o medo e a angústia são apenas alguns dentre os incontáveis sentimentos que habitam a alma humana. 
O viver é um constante entrelaçamento de instantes alegres e de instantes tristes. Ou melhor; é uma interpenetração de alegria e de tristeza, pois o bem e o mal, a vitória e o fracasso, o otimismo e o pessimismo residem lado a lado. 
A alegria contém em seu interior uma parcela de tristeza; a tristeza encerra um pouco de alegria. Alegria e tristeza não se sucedem uma a outra, ininterruptamente; mas coexistem num único instante. 
Pequenos acontecimentos, despercebidos pelos outros, insignificantes em aparência, podem e provocam profundos sentimentos de tristeza ou de alegria. 
Quando alegres, todos os homens são amigos, tôda a natureza sorri; o homem vê bondade em toda parte, é otimista e confiante. Quer transmitir alegria, quer tornar os outros partícipes de sua felicidade. 
Quando triste, os homens transformam-se em inimigos, isolam-se e sentem-se isolados, a realidade do mal torna-se mais evidente que a do bem, tornam-se pessimistas e céticos. Mesmo querendo encerrar dentro de si, a própria tristeza; não o conseguem, contaminam, principalmente, aqueles que mais amam. 
A alegria exterior é vulgar e superficial; a tristeza, nobre e profunda. 
Uma festa, uma comemoração, uma música, etc. trazem momentos de alegria. A constatação do mal e do sofrimento no mundo nos torna tristes. 
A tristeza ajuda-nos a compreender melhor o sofrimento alheio; desprende-nos de nós mesmos, dirige-nos aos outros. 
A verdadeira e profunda alegria reside no seio da mais profunda tristeza. O sacrifício encerra dor e sofrimento; é no sacrifício que encontramos a perfeita alegria. 
O oferecimento da própria vida, para o bem dos outros, é uma esmagadora vitória do homem, na aparência da mais completa derrota. 


5. As nossas experiências sentimentais permanecem incomunicáveis. Suas mais perfeitas descrições nada representam para quem não tenha sofrido semelhantes situações. 
Um homem que nunca tenha sentido medo, ri-se daquele que se encontra apavorado, porque não o pode entender; para o incrédulo, a fé é pura fantasia e imaginação; não a experimentando, não a pode justificar; para quem nunca amou, as atitudes dos amantes são ridículas. 
A influência dos sentimentos no pensar, no querer e no agir do homem, é bastante poderosa, chegando mesmo a escravizá-lo e a dirigir todos os momentos de sua vida. Mas, o homem sempre permanece com sua liberdade, que, embora enfraquecida, continua sendo capaz de o libertar da escravidão das paixões. 
Os sentimentos mais diversos encontram-se enraizados em seu ser; é seu dever o orientá-los e controlá-los, não permitindo aos mesmos dominá-lo e lançá-lo num estado semi humano. 
Os sentimentos quando controlados, contribuem para o enriquecimento espiritual e o bem estar corporal do homem; quando descontrolados, transformam-se em paixões que corroem o homem desde o interior do seu ser. 
Esta afirmação permanece válida mesmo quando se trata de sentimentos positivos, pois o amor pode-se transformar em doentia obsessão, a fé, em credulidade e superstição, a coragem em temeridade, etc.


6. Assim como os sentimentos e as paixões, também é grande a influência do que permanece inconsciente. 
Muita vezes agimos desta ou daquela maneira, ou escolhemos êste ou aquele objeto, sem aparentemente existir qualquer razão ou qualquer motivo para o agir ou para a escolha. No entretanto, sem que saibamos, algo existe em nosso inconsciente que condiciona esta ação ou esta escolha. 
Assim, muitos de nossos atos encontram-se justificados ou são influenciados por acontecimentos vividos no passado e que foram apagados da memória 
A origem de muitos sentimentos, freqüentemente estão sepultados no passado. A causa do medo, da antipatia, da superstição, etc., muitas vezes permanece inconsciente. 
Atos aparentemente realizados com plenitude de consciência e liberdade, podem sofrer influência de fatores inconscientes. 
A existência de influência de experiência hoje inconscientes no agir, não a podemos negar; mas estas influências não o explicam em sua totalidade. A despeito de todos os condicionamentos, sejam conscientes, sejam inconscientes, a LIBERDADE permanece sendo a causa determinante dos atos livres, na medida em que são livres.


7. Gostaria agora de fazer algumas considerações sôbre uma das mais intrigantes e úteis invenções humanas, comparando-a com o seu inventor. Trata-se do computador. É preciso ressalvar que são considerações de um simples usuário de computador, com o objetivo de auxiliar em nossas reflexões sobre a constituição espírito-corporal do homem; não de um técnico em informática.
No computador encontramos uma série de elementos; o HD, o modem, a memória, etc., que em seu conjunto constituem o equipamento, é o chamado “hardware”, ao qual se juntam os periféricos; monitores, teclados, mouses, impressoras, etc.
Temos também os diversos programas de computação a que damos o nome de “software”. Podemos dizer que o “hardware” é o corpo do computador, seus periféricos, os meios de comunicação com o exterior, e o “software” sua alma.
Por melhor que seja o equipamento “hardware”, sem que nêle sejam instalados os programas necessários, permanece inútil. Mesmo com a instalação dêsses programas, sem os periféricos que permitem abrir-se ao exterior, poderiam processar seus programas, mas não os comunicariam, continuaria a permanecer inútil.
Por outro lado, o “software” sem estar instalado num computador, de nada serve. Programas e equipamentos se completam e são necessários para o funcionamento do computador.
Tem-se considerado o nosso cérebro como um computador, embora muito mais complexo e desenvolvido. Vejamos:
Se nosso cérebro é um computador, seria o “hardware”; nossos membros e nossos sentidos os periféricos, recebendo suas ordens do celebro e enviando-lhes as impressões recebidas do mundo exterior. O “software” seria nossas idéias, planos e projetos. O “eu”, o programador que elaboraria e produziria o nosso “software”.
Esta reflexão mostra-nos a semelhança entre o homem e o computador; mas mostra também diferenças radicais; senão vejamos.
a. O computador apenas trabalha com o que está programado; o homem, embora também possa ser programado parcialmente, supera êste limite, procura e encontra fora de si elementos para seu agir.
b. Pela introspecção, analisando-se, pode mudar seus parâmetros para melhor ou para pior. O computador não pode, por si próprio, mudar sua programação
c. O computador executa tarefas com grande grau de dificuldade e com muita rapidez e precisão, mas depende de seus programas que foram elaborados pelo homem. Este é criador e transformador, cria novas metas, programas e projetos; transforma as já existentes.
Concluindo, por mais semelhanças que existam entre o homem e a máquina, entre o cérebro e o computador, não podemos deixar de considerar a dimensão espiritual, no todo espírito-corporal do homem e, tentar explicar toda a atividade humana pela atividade cerebral. Sem o “software” espiritual o “hardware” cerebral não funciona.