Parte 2 - Realidade, Presença, Mistério

A Realidade do Mal

1. – O mal é uma ausência de ser. A natureza é perfeita, tudo o que existe é bom. A realidade do mal é negativa.
Belos conceitos, demonstrados com impecáveis raciocínios. Quase acreditei neles.
Dia após dia, a vida me ensinou quão longe estão da realidade.
É muito fácil e belo negar-se a realidade positiva do mal. Quando se está longe da experiência, quando se permanece nos domínios do abstrato e do ideal.
Em contato com o homem, o mundo e a natureza, constantemente, encontro-me frente à real, impressionante e terrificante existência do mal.
O sentimento existencial do mal é um sentimento de realidade positiva e determinada. Não há como negá-lo ou universalizá-lo.
A natureza de cada ser é dotada das perfeições exigidas por sua essência, isto é verdade. A natureza é realizada no indivíduo existente, muitas vezes, imperfeita e defeituosamente, isto também é verdade.
É no real e não no ideal, no individual e não no universal, no existente e não no possível que constato a realidade do mal.
Sua presença a constato disseminada por tôda a natureza, penetrando todos os seus domínios e, sob aspectos mais diversos.
A imperfeita realização da essência é causa de existência de indivíduos positivamente defeituosos. É o caso de uma árvore torta, de um pássaro sem asas, de um cachorro desdentado.
Entre os homens, muitos há que são cegos, surdos, aleijados, etc. Sendo a cegueira ausência de visão é um mal negativo, certo. Entretanto, no mundo o que existe é o cego e não a cegueira; o cego é um ser real. O mesmo se pode dizer com relação ao surdo, ao mudo, etc.
Se o caso anterior apresenta terreno propício à discussão, não vejo como se poderia negar a realidade positiva de uma doença. Afirmar que esta é ausência de saúde, parece-me falsear demasiadamente a realidade. A doença existe, é uma realidade maligna que expulsa a saúde física ou psíquica. Quando um indivíduo está doente, nêle a saúde não mais existe; neste caso a realidade negativa é a da saúde, não a da doença. Uma úlcera, um tumor, etc. podem ser constatados a qualquer momento e por qualquer pessoa.
O mal encontramos também nos acidentes, um desastre ou uma queda, por exemplo, são realidades essencialmente más. Raciocinar sobre a perfeição dos automóveis ou do salto, quando temos em nossa frente um desastre, é raciocinar sobre seres e fatos irreais. Não nego a realidade dos automóveis ou do salto, o que seria ir contra a evidência, apenas quero dizer que ao considerar o desastre ou a queda, deve-se considerar apenas êsses fatos e não a bondade de um automóvel em perfeitas condições ou de um salto que não se realizou. Não sei como negar a essencial maldade do desastre ou da queda.
Especial atenção tem-se dedicado ao problema da dor. Justificar a dor como um bem, por assinalar a existência de algum defeito no organismo e assim prevenir o homem contra este mal, não satisfaz. Por que não constatar a falha orgânica sem necessidade de sofrimento?
Para o homem que sente a dor, esta é uma realidade desagradável e indesejável. Uma dor de dentes ou de estomago, atrai sobre si toda a atenção de quem a sente. Esta pessoa não pode realizar nada com perfeição, enquanto não se livrar da dor. A dor é um mal que assinala a existência de outro mal.

2. – O bem e o mal coexistem e entrelaçam-se na natureza. O mal é interior aos seres. Uma rosa, um livro e um pássaro são seres bons, mas com o passar do tempo, a primeira murcha, o segundo rasga e o terceiro morre. É a realidade da destruição que não respeita nenhum ser. É o próprio mal incrustrado na essência dos seres.
A destruição realiza-se no interior de cada ser ou é provocada por seres exteriores. Lobos matam cordeiros, pássaros exterminam insetos, raposas liquidam galinhas. Na relação entre os seres, o que é bom para uns é mal para outros. Quotidianamente, os seres se degradam e são destruídos. É uma lenta e constante tragédia, que quase sempre permanece ignorada.
Ao contrario, quando a destruição é realizada em larga escala, perde o anonimato e torna-se tristemente célebre. Assim, as grandes secas, os dilúvios, os furacões, os incêndios, os terremotos, a peste e a guerra. Estas enormes, terrificantes e, muitas vezes inevitáveis tragédias, são testemunhas e provas contundentes da positividade do mal.

3. – A realidade do mal não se limita ao mundo físico; ao contrario, é no social, no moral e no espiritual que a encontraremos mais terrível e acabrunhante.
Na relação entre os homens, ocupa lugar preeminente a incompreensão, o desentendimento e a rixa. No seio de uma mesma família, quantas vezes, pais e filhos, irmãos e irmãos, falam línguas diferentes.
O egoísmo, a inveja, o ciúme, a ira, o, orgulho e inúmeros outros vícios que tem moradia na alma humana, são causa de briga, perseguições, injustiças e até mesmo de mortes.
A incompreensão agrava os sofrimentos físicos e os torna insuportáveis.
São os vícios que corroem a alma humana que tornam o homem cego ao sofrimento alheio, fazem-no esquecer os outros, provocam o aparecimento no seio da sociedade da injustiça social e com esta da fome, da ignorância, da superstição, do crime, etc.
As discórdias, as revoluções e as guerras encontram na incompreensão humana terreno propício para a sua realização.
Tremendamente dolorosa é a existência de pessoas que morrem por não terem o que comer, de homens que dormem ao relento, de crianças que crescem abandonadas, de doentes que não recebem cuidados médicos.
Muitas vezes mais doloroso é a existência de pessoas dotadas de recurso, que constatando esses fatos, não só nada fazem para solucioná-los, como também, ignoram-nos e justificam-nos.
O mal penetra tôdas as camadas sociais, sem poder ser controlado. Pobres e ricos, sábios e ignorantes, leigos e religiosos, velhos e crianças são vitimas de sua tirania.

4. – Presenciar o sofrimento físico de uma criança é muito triste; mas, não é nada em comparação à constatação da degradação e da devassidão moral que coroe a humanidade, penetrando nos sagrados domínios da infância, lançando na lama do vício seres, inocentes e puros, incapacitados de preservarem-se e mesmo de perceberem sua queda.
Os meninos e as meninas, quais indefesas ovelhas deixadas ao abandono, são constantemente vítimas de lobos vorazes, que lhe roubam a inocência e, encaminham-nas aos vícios mais sórdidos.
O homem penetra na trilha do vício sem perceber a gravidade do seu ato. Quando acorda para o perigo, muitas vezes é demasiado tarde para tentar, com sucesso, a volta ao caminho da virtude. O mal deixa desde a infância sua marca fatídica na alma humana.
A incapacidade de muitas crianças, para não dizer de tôdas, em defenderem-se dos vícios e, a incapacidade dos homens de vencerem completamente os males que lhe são interiores, mostra-nos a realidade do mal integrada na essência de cada indivíduo. Uma alma perfeita não poderia jamais ser arrastada ao mal, sem seu próprio consentimento e, estaria capacitada a vencer o mal quando o quisesse. Esta alma seria uma fortaleza inexpugnável às forças do mal.
Uma criança em sua inocência, ao dar os primeiros passos na trilha do mal, o faz sem perfeito conhecimento e, sem responsabilidade por suas ações. Estas, no entanto, permanecem ações más. A inocência mais uma vez é arrastada ao vício, uma alma pura mais uma vez é incapaz de evitar o início da degradação. Esta incapacidade é a presença do mal na própria morada do bem.

5. - Malignas doenças enraízam-se na alma humana, contaminando todas as suas ações e sentimentos, inclusive os mais nobres. É o orgulho, o egoísmo, a vaidade, o ciúme, a preguiça e muitos outros que invadem e dominam os pensamentos, desejos e ações do homem.
Belo e nobre é o amor, entretanto quantas vezes não é degradado pela presença dêsses vícios? O amor assalta o coração do homem, sem que êste o possa explicar; o homem ama e é tudo.
O amante quer o bem da pessoa amada; não obstante, muitas e muitas vezes transforma-se num tirano, num déspota, num carrasco. Querendo o bem, faz sofrer e sofre.
O amor invade tôda a alma, é senhor absoluto dos amantes, é um fogo ardente que parece eterno. Êste fogo não é eterno, o amor se acaba, quando não se transforma em ódio. A pessoa amada é substituível.
Quantos amantes existem solitários sem serem notados pela pessoa amada? Quantos amantes são odiados e desprezados pelos amados?
O amor habita o homem todo, a alma e o corpo. Assim, ao lado dos sentimentos espirituais encontra-se o instinto sexual. Longe de mim afirmar que o sexo é um mal; ao contrario, afirmo que enquanto voltado para a preservação da espécie e, enquanto, liame de união entre dois amantes é um grande bem.
O mal reside na atração sexual, quando esta passa a dirigir todas as ações do homem, quando se degrada, quando elimina do coração humano o amor.
Deficiências naturais ou vícios adquiridos são responsáveis pela degradação sexual. De qualquer modo, esta é sempre uma mancha na natureza humana. O homem nem sempre é capaz de resistir vitoriosamente aos ataques do sexo. O grande mal interior ao instinto sexual está no fato de que êste nem sempre pode ser controlado pelo homem, ou de exigir grandes sacrifícios para não se degradar.
Assim como o amor, atos de heroísmo, sentimentos de piedade, a amizade, a honra, atitudes religiosas, etc., são constantemente maculados pela presença indesejável do vício.
Não é necessário o homem querer, para ser atacado por toda a parte pelos vícios, os mais diversos. Vícios que cegam e que matam gradativamente o bem que reside em sua alma.

6. – Inúmeros outros males levam o homem ao encontro do sofrimento, da dor e da tristeza. O medo, a angústia e o desespero são alguns dentre os mais graves.
O homem dominado pelo medo, não é mais homem. Não age racionalmente, perde tôda sua liberdade. Por medo, dobra-se perante uma vontade mais forte e a acontecimentos exteriores.
Muita coisa gostaria e poderia o homem de fazer, mas não consegue; muitas vezes, age contra o seu querer, porque é escravo do medo.
Êste terrível sentimento desnaturaliza o homem e lança-o numa existência de contínuos sofrimentos e sobressaltos.
A própria existência do homem, colocando-o em contato e fazendo-o sofrer intensamente a realidade do mal, lança-o na angústia.
O homem angustiado é o homem colocado frente ao seu nada, frente à sua incapacidade de agir e de vencer os males que impedem a solução de problemas que lhe são vitais.
A presença do homem frente ao mal, a visão dêste mal sem os disfarces que constantemente o envolvem e escondem, é a angústia.
O sentimento de angústia cega o homem ao bem, mostrando-lhe apenas a realidade maligna que se encontra na natureza.
O desespero é o profundo sentimento de fracasso e de culpa.
O homem desesperado, não acredita na possibilidade de superar a situação que o levou ao desespêro. Esta total descrença em si próprio o faz desejar sua própria nadificação e o leva, freqüentemente, à loucura e ao suicídio.

7. – A realidade do mal, pode ser ainda constatada debaixo inúmeros outros aspectos. Não é necessário e, nem seria possível descrever tôdas as formas nas quais o mal se realiza na natureza.
Constatá-lo e senti-lo é tarefa fácil; é necessário apenas abrir os olhos para a realidade.
O mal existe, invade todos os domínios da natureza, é sofrido pelos homens e integra-se profundamente na alma humana, condicionando o seu pensar e o seu agir.
Sua realidade é um fato que não admite contestação, no entanto, nada nos permite afirmar sua necessidade. A natureza seria mais compreensível sem a existência do mal. Êste existe nela como um indesejável intruso. Sua existência é real, mas não necessária.

8. – O mal é um mistério tenebroso e incompreensível à mente humana. A sua causa, talvez a encontremos junto às suas mais perfeitas realizações: o pecado e a morte.
Na natureza, na sociedade e no individuo, o mal e o bem coexistem lado a lado. No pecado e na morte apenas existe o mal.
O homem peca na medida em que é consciente do mal de seu querer e de sua ação e, não obstante quer o mal e age para o mal, assumindo a responsabilidade pelo seu ato.
Aceitar o mal e sofrê-lo com resignação ou, sacrificar-se tendo em vista o bem próprio ou de outrem, é uma grande virtude. Querer conscientemente o mal, mesmo sob a aparência de bem, tendo em vista apenas o mal, é a realização plena e injustificável do próprio mal.
Querendo e agindo para o mal, o homem peca. Ao pecar, o homem realiza um ato decisivo, no qual empenha todo o seu ser. Sendo o homem mìsticamente ligado a seus semelhantes e a tôda a natureza e, sendo seus atos maculados por seus pecados, como se admirar da existência do mal no mundo?
A existência do mal físico ou moral, individual ou social é conseqüência direta do pecado.
Um único pecado, em sua essencial maldade, é suficiente para macular a própria natureza. Sua ação maléfica não se limita ao pecador, mas através deste atinge tôda a natureza.
Pecando o homem quer e produz o mal. Em conseqüência, todo o seu ser é tomado pelo mal. O pecado destrói na alma humana todo vestígio de bem e transforma-a profundamente, tornando-a essencialmente má, enquanto em estado de pecado.

9. – O homem vive, mas sua vida não é eterna, após breve caminhar deve encontrar-se com a morte.
O homem nunca acredita em sua própria morte. Sabe que ela virá, pode mesmo desejá-la; mas, mesmo nos derradeiros instantes julga-se imortal.
A morte é o fracasso de uma vida. Com a morte, tudo perde sentido, nada mais tem significação. A morte é o total e inevitável fracasso do homem.
Como no pecado, na morte não existe sombra de bem. Aquêle é evitável, esta inevitável.
Essencialmente ser-para-a-morte; o homem existe na presença do mal. O pecado é a causa da existência do mal; a morte, a sua consumação.
O pecado e a morte, realidades malignas em si, permite-nos explicar as demais realidades malignas, mas permanecem inexplicáveis. A existência do mal pode ser constatada, mas não pode ser explicada.
O mal permanece para o homem, um mistério absurdo e irracional.

A Presença do Bem

1. – O homem existe na presença do bem.
O bem se encontra realizado em cada um dos seres com quem entramos em contato, pois o simples fato do ser e do existir é em-si inapreciável bondade. Êste é o bem ontológico.
Entretanto, se para cada ser, sua própria existência é um bem, para o homem a existência de um ser pode vir a ser maléfica. Sendo o homem, o único ser-intramundano capaz de percepção dos valores realizados nos seres, é em relação a êle que procederemos nossas considerações sobre a realidade do bem.
O homem entra em contato com o bem, através de diversas formas, pelas quais o mesmo se realiza nos diversos seres-intramundanos.
A utilidade, a aventura, o conhecimento e a sabedoria, o belo, as virtudes e o amor, são dentre essas formas as que consideramos básicas e que passaremos a analisar ràpidamente.

2. – Primeiramente, percebemos a bondade dos objetos através de sua utilidade; assim a água sendo-nos útil para nos saciar e o fogo para nos aquecer, contém em si a bondade.
Da mesma forma o bem se encontra realizado como utilidade, em todos os seres que servem para nosso alimento, ou para nosso vestuário, como matéria prima para a construção de nossas casas ou para o fabrico de nossos utensílios, para serem utilizados em nosso serviço ou como meio de transporte, etc.
Enfim, tudo o que tenha finalidade prática e imediata é um bem realizado como utilidade. O homem que se diz “prático” quase que percebe o bem exclusivamente, quando realizado sob êste aspecto. A tecnologia visa, sofisticadamente a produção do útil.

3. – Ao contrário, quando vamos pescar a beira do rio ou quando nos embrenhamos na mata a busca da caça, quando escalamos montanhas ou quando exploramos lugares por nós desconhecidos, quando nos dirigimos às praças esportivas para a prática de esportes ou simplesmente para os apreciar, etc., muito embora necessitemos de utilizar objetos úteis, nosso objetivo não é o utilitário, mas a aventura.
O bem se realiza através da aventura, quando nosso ser encontra excitamento e repouso. Excitamento, em virtude da atividade extraordinária e do imprevisível, que é essencial à aventura; repouso porque permite que deixemos por alguns momentos nossas preocupações do dia a dia e nos coloca longe da esfera do utilitário.
O prazer, o bem estar, a satisfação que encontramos na aventura, é uma forma de bem, que embora não possuindo o mesmo grau de necessidade do bem útil, possui dignidade maior, por requerer mais do espírito.
Os animais possuem certo sentido do utilitário; mas sòmente aqueles que ocupam posição de maior preeminência na escala zoológica, como os símios e os cães, são capazes de distração e, sòmente o homem é capaz de aventura. A aventura requer o estar consciente do imprevisível: requer, portanto, consciência e liberdade.

4. – Numa esfera mais elevada, a esfera científica, o bem se realiza através do conhecimento e da sabedoria. Refiro-me ao estudo objetivando um melhor conhecimento do homem e do Universo, do interior do ser humano e dos seres que lhe são exteriores.
Ao atingirmos a esfera científica, atingimos um estágio no qual o espírito, definitiva e indiscutivelmente, passa a ocupar sua posição de preeminência sobre a matéria. Embora as vezes vise o útil , seu objetivo principal é o conhecer.
A ciência permite ao homem penetrar mais profundamente a realidade, a natureza e a constituição dos seres. O conhecer um ser com maior perfeição é, sem dúvida alguma, um grande bem; além disso, a ciência, permitindo ao homem conhecer melhor a realidade, fornece-lhe elementos para a realização do progresso e enriquece a esfera do utilitário, acrescentando novas utilidades e novas possibilidades aos diversos seres.
Assim como a ciência, a filosofia também procura o bem sob o aspecto do conhecimento e da sabedoria. A diferença está na perspectiva em que os seres são focalizados: a ciência através de seus diversos ramos especializados estuda os seres em particular e sob aspectos determinados, a filosofia procura a compreensão do Ser em sua totalidade e no seu realizar-se ontológico e existencial. A ciência permanece no domínio do problemático; a filosofia deve penetrar o misterioso.

5.- Na esfera estética, o bem realiza-se através do belo. A própria natureza, nos fornece incontáveis oportunidades para admirarmos a beleza; o belo constatamos nas montanhas e nos vales, nas florestas e nas campinas, nos mares e nos rios, nas estrelas, na lua e no sol, nas pedras e minerais preciosos, nas flores e nas árvores, nos pássaros, nos peixes e nos animais do campo; enfim por tôda a parte encontramos o que admirar e em que extasiarmo-nos.
O homem, através da arte, acrescenta muito à esfera estética, dos sons da natureza compõe melodias imortais, com as cores realiza obras primas de pintura, utilizando a pedra ou a madeira esculpe estatuas colossais, etc.
O sentir do belo, não se pode negar, é um dom precioso, de que a natureza de cada homem é dotada.

6. – Na esfera ética o bem se realiza através das virtudes; da humildade, da prudência, da coragem, da honestidade, da veracidade, da transparência, da fidelidade, da justiça, da castidade, da inocência, etc.
Aqui encontramos a presença do bem, a penetrar e a transformar as relações interpessoais; aqui, olhando cuidadosamente, surpreendemos o bem penetrar a própria realidade do mal.
Admiramos aquele homem que em meio ao sofrimento e atribulação, sabe como atravessá-los com paciência e resignação; admiramos, também, aquêle que, mergulhado na lama do vício sabe, lutando com constância e tenacidade, libertar-se do mesmo e reafirmar sua dignidade como pessoa humana.
Quantos são os heróis anônimos, que envoltos num ambiente de injustiça e desonestidade, tendo oportunidade para agirem desonestamente e permanecerem impunes, não o fazem e preferem sofrer privações, para não macularem a honra e a justiça.
O orgulho, a presunção, a vaidade, a mentira, a falsidade encontram-se por tôda a parte; mas, continuam existir e sempre existirão aqueles homens que norteiam sua existência pela veracidade, lealdade e humildade.
Se é mais fácil o constatar-se a existência de indivíduos desonestos e privados de caráter, isto não se deve a raridade de indivíduos virtuosos, mas ao fato de que a virtude sempre se esconde sob o manto da humildade, o que torna o homem virtuoso ainda mais digno de admiração.
Mesmo no interior dos homens mais indignos e depravados, sempre permanece algo de bom, alguma virtude adormecida que uma vez despertada, pode transformá-los, libertando-os do mal e revivendo-os para o bem.
Quer no interior de cada homem, quer no social e no histórico, as fôrças do mal e as do bem se encontram em constante batalha. Numa primeira observação, nos deixa com a impressão de que o mal está constantemente a vencer e a destruir as realizações do bem; são as guerras, as injustiças, as catástrofes, os vícios, os crimes, etc. a trazerem a destruição, a depravação e a morte. Mas, numa observação mais acurada, percebemos que é o bem que pouco a pouco está a vencer: a escravidão foi abolida, as pestes e epidemias são erradicadas, a injustiça social, embora vagarosamente, cede lugar a uma ordem social mais justa, etc., tudo isto contribui para que o próprio Universo se humanize e se espiritualize.
Não estando submetidas às leis morais, as fôrças do mal parecem dotadas de mais poderosas armas; mas, as fôrças do bem, fundamentadas na verdade, no direito e na justiça estão preparadas para o construir de um mundo melhor. A existência de homens virtuosos garante a realização dos valores morais no Universo.
A esfera ética como que envolve todo o Universo, suas leis estão escritas no cerne da natureza e no coração do homem. É este quem, dotado de consciência e liberdade, está habilitado a interpretá-las e a atualizá-las.

7. – No mais profundo do homem e na mais perfeita de suas relações com o outro, o bem se realiza através do amor.
O amor não conhece barreiras, penetra todos os seres e tôdas as esferas; é o amor ao útil, à aventura, ao conhecer e à sabedoria, ao belo e à virtude que vivifica as diversas formas de realizar-se do bem.
Sem o amor, mesmo um ato de grande heroísmo ou a prática de perfeita justiça permaneceria vazio de significação. O amor penetra os seres em seu interior e dá-lhes consistência. O amor é a mais perfeita forma, pela qual o bem se realiza.
O amor é a amizade leal e sincera existente entre amigos, é o elo de união entre os irmãos, é a admiração dos filhos pelos seus pais, é a fidelidade do esposo à esposa, da esposa ao esposo, é o patriotismo que identifica o homem com a sua pátria, é o sacrifício do homem pelo próximo, pelo conhecido ou desconhecido, pelo amigo ou inimigo, enfim pelo Outro.
Através da relação amorosa é estabelecido entre o homem e o homem, contato íntimo e profundo, de interior a interior, de alma a alma.
No perfeito realizar-se da relação amorosa entre dois seres, a união é tão íntima que apenas um permanece; não êste, nem aquele, nem parte de um e parte de outro, mas sempre o outro.
O amor é desapegado e altruísta, quando amando o homem deixa de ocupar o centro de seu Universo e nele coloca o ser amado. O amado passa a ser o centro de convergência de tôda a sua atenção, os demais seres passam a existir apenas a sombra do ser amado.
Quem não presenciou um jovem ou uma jovem, a existir instante a instante na contínua presença do ser amado? Suas conversas, suas distrações, suas atividades, sempre se referem ao amado e o tornam presente, mesmo estando distante.
Assim também, o pai trabalha toda a sua vida, pensando mais no bem estar de sua família, do que no seu próprio bem estar. A mãe vive para seu filho; já antes do nascimento, êle se encontra em seus sonhos; depois, enquanto criança, é o centro de suas atividades; na juventude, constantemente lhe traz preocupações; na maturidade, tendo constituído sua própria família, permanece em suas orações. O amor da mãe acompanha o filho mesmo depois de sua morte.
O amor não se limita ao amar-se uma única pessoa; realiza-se de diversas maneiras, conforme a pessoa a quem é dirigido. Um é o amor do espôso a espôsa; outro dos pais aos filhos; outro ainda o existente entre amigos.
Um homem amando com todo o seu ser a sua mulher, é capaz também de amar seus filhos, seus pais e seus amigos. Sendo o amor essencialmente espiritual, o homem é capaz de dar-se totalmente a cada um dos indivíduos a quem ama. A capacidade do homem para amar é ilimitada, sua realização e sua intensidade dependerão do próprio homem.
Ao amar, o homem conhece o ser a quem ama e, o ama enquanto pessoa. A relação amorosa nunca se reduz a relação impessoal.
Um homem capaz de amor cósmico ama cada homem enquanto ser-pessoal. Francisco de Assis ou Teilhard de Chardin foram capazes de amarem intensamente a todos os seres, porque neles sempre encontravam a presença de Deus.
Apenas impropriamente, podemos falar de amor à humanidade, à pátria, à justiça, à verdade, etc., pois neste caso indiretamente o homem ama o homem. Amando a pátria ama seus concidadãos, amando a justiça ama aqueles que sofrem injustiça, etc.
O amor é capaz de sacrifício.
É o amor que faz os homens aceitarem a lutar até sua própria morte para conquistar paz e prosperidade para outros homens; é o amor que leva os homens a arriscarem a própria vida, para arrancarem outro das garras da morte, muitas vezes mesmo sem conhecerem êste outro; é ainda o amor que fortalece os homens a trabalharem arduamente tôda a sua existência para produzirem algo de que nunca virão a se beneficiarem, mas que propiciará uma vida melhor aos homens do futuro.
Movido pelo amor, o homem esquece-se de si para dedicar-se ao outro. O amor cura os doentes, consola os que choram, educa e protege as crianças, agasalha os que têm frio, dá de comer e de beber a quem tem fome e sêde, acolhe os abandonados, visita os presos, rememora e reza pelos mortos.
Através do amor constatamos a presença do bem por tôda a parte e em todos os seres. O que o ódio destrói, o amor reconstrói.
Se a realidade do mal se encontra presente na própria essência do homem, esta é essencialmente um bem, porque o homem é um ser capaz de amar.

O Mistério do Universo

1. – Em meu contínuo contato comigo mesmo, com os homens e com o mundo, a cada momento que passa, torno-me mais seguro de que a resposta cristã ao mistério que envolve todos os seres e todo o existir é a única capaz de explicar a realidade na qual vivemos, principalmente, porque a única que respeita e não tenta desvendar o mistério da existência.
Tôdas as demais interpretações da realidade, possuem certa logicidade interior e, conseguem explicar logicamente um Universo, mas não o Universo em que vivemos e, sim um Universo que organizamos com os nossos conceitos; um Universo lógico, mas artificial e irreal.
Freqüentemente, o homem, ao interpretar o Universo, afasta-se da realidade, porque se baseia para sua interpretação apenas em aspectos particulares da mesma, construindo todo um sistema que em virtude do rigorismo e perfeição de suas conexões lógicas se impõe de tal forma ao intelecto humano, que o homem ao entrar em contato com realidades que não se encontram em acordo com êste sistema, em lugar de o rejeitar como falso e artificial, ou rejeita a realidade da realidade, ou dá-lhe uma interpretação também artificial, capaz de ser integrada neste sistema.
Para evitar o risco do artificialismo, que nos leva a ver e a interpretar a realidade de acordo com a conceituação que dela possuímos em lugar de elaborar a nossa interpretação em conformidade com a própria realidade, devemos procurar considerar o Universo em sua totalidade, considerando-o sob todos os aspectos que nos for possível o considerar.
Devemos também, considerar o Universo concreta e existencialmente, não abstratamente. O raciocínio abstrato quer dedutivo, quer indutivo é válido para a resolução de problemas, deve ser utilizado para o progresso científico. Para penetrar o mistério, devemos raciocinar concretamente, isto é, através da intuição, entrar em contato com o próprio realizar-se do ser e, através da reflexão profunda tentar permanecer fiel, ao transmitir a realidade atingida através da intuição, evitando ao máximo o desconcretizá-la.
O fracasso de muitas filosofias está em querer utilizar método válido apenas no campo científico para interpretar o mistério do Universo, do Homem e de Deus. Não é de se admirar que alguns cheguem a declarar sem significado e, portanto inútil a própria metafísica e também o pensamento místico.
A limitação e a imperfeição de nossa capacidade cognitiva, não impede uma interpretação válida e real da realidade universal, dependendo sua profundidade e perfeição de nossa habilidade em considerar o mais integralmente possível a realidade dos seres inseridos no Universo e, de os considerarmos enquanto seres-existentes e em suas múltiplas inter-relações, evitando assim a artificialização e a racionalização do que é real e existencial.

2. – Existindo no Universo, existindo na presença da realidade indiscutível e impressionante da matéria, de que são constituídos todos os seres intramundanos, não excetuando nosso próprio ser, constatamos a existência nos seres materiais de certas propriedades, como a extensão, a impenetrabilidade, a elasticidade, etc. que são essenciais à matéria; constatamos também a existência de leis mecânicas que governam as relações físicas entre os diversos seres materiais. Mesmo sabendo que essas leis são elaboradas pelo homem, no seu afã de interpretar estas relações.
Ainda na presença da matéria, verificamos a existência de fôrças impressionantes, capazes de destruição e de transformação, que é a própria matéria sob a forma de energia; verificamos também a existência de seres orgânicos e viventes. A vida encontramos quer no mais evoluído dos animais, quer no mais primitivo dos vegetais.
Por toda a parte, constatamos o desenvolver-se universal, através do qual, os seres-intra-mundanos e todo o Universo, constantemente transformam-se, num vir-a-ser incessante. O dinamismo universal parece irresistível, mesmo os seres, aparentemente sem movimento, transformam-se.
Entretanto o transformar-se não é um constante progredir, constitui-se de progressos e de regressos e, quando atinge um certo estado de perfeição começa a deteriorar-se, quando não é destruído subitamente. É a lei da destruição universal que não respeita nenhum ser-intramundano, nem irá respeitar o Universo em sua totalidade. Ao que parece, a destrutibilidade é essencial à matéria.
Todos os conjuntos dos mais diversos seres, inter-relacionados entre si pelas leis mecânicas, encontram-se no Universo organizados em um todo homogêneo e harmonioso. Cada ser parece estar destinado a servir a outro ser, cada ser depende de outro e depende da totalidade dos seres, a totalidade depende dos seres particulares pelos quais é constituída.

3. – O Universo em sua totalidade, compreende não somente seres pertencentes aos reinos da natureza orgânica e da inorgânica incluem o homem em sua integralidade de ser espírito-corporal, bem como as suas relações existenciais com outros homens e com outros seres intramundanos.
Através de seu agir, o homem transmite um pouco de si ao Universo, transformando-o e espiritualizando-o; através de seu agir, o homem dota o Universo de todo um envoltório técnico, científico, estético, ético e religioso, a noosfera na terminologia teilhardiana, acrescentando ao Universo uma dimensão espiritual; através de seu agir, o homem, podemos dizer utilizando analogismo, atribui uma alma ao Universo, que é o resultado do contínuo criar do seu espírito, que é a extensão e a presença de seu ser na matéria.
Considerando a presença do homem no Universo, devemos considerá-lo em sua integralidade, essencial e existencial, o que nos leva a considerar o homem naquilo que lhe é interior, em seu sentir, pensar, decidir, agir; naquilo que lhe é exterior, em suas relações de mundanidade, sociabilidade, historicidade, misticidade e, em seu existir na presença do bem e do mal.
É considerando o subjetivo e o objetivo, o material e o espiritual, o social, o histórico e o místico, o bem e o mal, etc., que é possível o chegarmos a encontrar uma causa adequada e uma razão suficiente, capaz de dotar a existência do homem e a existência de todo o Universo de sentido e significado.

4. – Se, ao analisarmos a realidade, concentramos a nossa atenção em nossa própria interioridade, seríamos levados a supervalorizar o subjetivo, em prejuízo do objetivo; chegando mesmo, no caso de levarmos ao extremo nossa supervalorização das realidades interiores, a negar a existência real dos objetos exteriores, passando a considerá-los como simples ilusões ou, projeções do nosso espírito. Neste caso, o único ser real seria o nosso “eu”, ou melhor, o meu “eu” e, todo o Universo não passaria de elaboração de minha imaginação.
Sem chegar a tais extremos, poderíamos aceitar a existência dos seres exteriores, mas negar a nossa possibilidade de os conhecer tais como são em-si; ou, distinguir de tal maneira os nossos Universos interiores, organizados com nossas percepções e conceituações, do Universo objetivo que não restaria lugar para qualquer ponto de contato entre os mesmos.
Por outro lado, se concentrássemos nossa atenção apenas no objetivo, chegaríamos a negar nossa liberdade e nossa unidade interior e pessoal; nosso ser reduzir-se-ia a simples produto do meio, da sociedade ou da história.
Considerando o Universo, apenas em seu aspecto material, poderíamos tentar explicar toda a realidade através das leis mecânicas e da evolução da matéria; sendo tudo o que existe, inclusive os seres vivos e as realidades espirituais, simples conseqüência desta evolução universal.
Mas, se nos limitar-nos a considerar a dimensão espiritual do Universo, seríamos tentado a colocar a realidade no ideal e no abstrato, considerando o real e o concreto ou, como simples ilusão ou, como estágio passageiro de involução e degradação do espírito.
Todas estas interpretações e muitas outras, por mais perfeitamente elaboradas que sejam e ainda que capazes de incluir o mais completamente possível a totalidade dos seres intramundanos, sempre permanecem incapazes de apresentar satisfatória explicação da causa e da razão do existir, em virtude da contingência universal que atinge todos os seres intramundanos e a totalidade do Universo.
É verdade, que nos restaria o declarar a existência do Universo, como um dado absoluto e absurdo, sem haver qualquer razão, causa ou sentido para o existir. Assim, todos estes sistemas e interpretações, caso levados as extremas conseqüências, ao focalizarem o mistério da existência, deveriam concluir pela sua absurdidade.
A contingência universal nos leva, portanto, ou ao absurdo de uma existência sem razão nem sentido, frente à realidade da destruição, ou à existência de Deus.

5. – Ao considerarmos, entretanto, Deus, enquanto causa e razão de todos os seres contingentes e de todo o Universo, não nos basta afirmarmos a sua existência, mas é necessário que êste Deus que consideramos, seja o Deus existente, seja o Deus capaz de ser a causa e a razão do ser existente. Não simples conceito abstrato, elaborado por nossa mente, quando frente a insatisfatoriedade das demais soluções, o que tornaria uma vez mais, nossa interpretação falsa e artificial e, estaríamos destinados ao fracasso em nossa tentativa de superarmos a absurdidade de existir sem razão para o existir.
Inicialmente, nós devemos evitar multiplicar, sem necessidade, os deuses e as divindades, com a necessidade que tivermos para explicar acontecimentos particulares. Esta multiplicação de deuses nos colocaria frente a seres que, existindo, seriam mais perfeitos que os seres-intramundanos, mas permaneceriam incapazes de explicar a realidade em sua totalidade e limitados em suas perfeições; em resumo, permaneceriam seres contingentes, o que nos colocaria na mesma situação que estaríamos se negássemos a existência de Deus.
Devemos também, evitar o focalizar nossa atenção apenas na solidariedade mística universal, o que nos levaria à negação da personalidade individual e a uma interpretação panteística do Universo, segundo a qual todo o Universo faria parte da divindade. Esta interpretação panteística, considerando os seres com todas suas imperfeições e limitações como partes de Deus, estaria atribuindo estas mesmas imperfeições e limitações ao Ser necessário e absoluto, o que nos colocaria frente a absurdidade de um Deus ao mesmo tempo perfeito e imperfeito, absoluto e limitado, necessário e contingente.
Considerar, por outro lado, Deus apenas em sua transcendência, sendo sua única relação com o Universo, o tê-lo criado, nos forneceria uma causa para a existência do Universo e para a nossa existência, mas, não a dotaria de sentido e de significado, não eliminando a absurdidade do existir. Além disso, seria contraditória e absurda a criação do Universo por um ser perfeito e todo poderoso, seguida por um abandono desta mesma criação. Seria o agir próprio dos insensatos, não o agir de um Deus.
Um Deus existente deve, possuindo em si todas as perfeições e causando a existência dos seres contingentes, sustentá-los na existência. Êste Deus deve ser, ao mesmo tempo, o totalmente outro, o transcendente absoluto e, penetrar e sustentar na existência todo o Universo, sendo interior a essência de cada ser, imanente ao próprio existir.
Não é só, não basta o ser transcendente e imanente, o conter em si todas as perfeições e o sustentar no existir os seres contingentes, permitindo que participem em seu Ser; é necessário que ao sustentar na existência os homens, preserve suas personalidades individuais e ao mesmo tempo promova a mística união que une os homens entre si, na sua Presença. Para isto é necessário que o Deus existente seja um Deus pessoal. Pois somente em presença de um Deus pessoal, é possível ao homem depender totalmente do mesmo, estar intimamente unido aos demais homens, a ponto de com êstes constituir uma única personalidade mística e, ao mesmo tempo não ser absorvido pela divindade e não ter destruída sua própria personalidade, nem sua liberdade, sua consciência e sua unidade interior.
Mais que isto, o Deus existente, contendo em si toda a perfeição e não necessitando de nada que lhe é exterior, deve permanecer aberto ao Universo, capaz de amar a sua obra, por ser obra toda pessoal e não simples produto de uma causa anônima, cega e impessoal.
É apenas o amor de Deus que dá um sentido e uma explicação à presença do mal no mundo. Não que seja o amor divino a sua causa, mas porque amando Deus o Universo, isto significa que êste é digno de ser amado apesar de todas as suas imperfeições e de conter a realidade indesejável do mal. Se Deus ama o Universo, se Deus ama os homens, se Deus ama os sofredores e mesmo os pecadores, é porque o mal pode ser vencido, a destruição e a morte podem ser superadas.
Se Deus não é um Deus de amor, a existência do mal no Universo nos lança novamente frente ao absurdo, pois um Deus que criasse o Universo e nele permitisse o mal, fosse incapaz de superá-lo ou permanecesse indiferente ao destino de sua criação, ou teria fracassado em virtude de sua impotência frente ao mal, ou o teria desejado, desejando assim o mal para suas criaturas. Em ambos os casos Deus não seria perfeito, não sendo capaz ou não querendo vencer o mal, nossas esperanças perderiam sentido, nossa existência tornar-se-ia absurda.
Mas se Deus é capaz de amar mesmo o sofrimento, se ele é capaz de amar o Universo apesar da realidade do mal, é porque o mal e a destruição não são absolutos, ao contrario, se são permitidos por um Deus que ama os seres por Ele criado, é porque permitem a realização do bem, permitindo ao homem e ao Universo atingirem um estado de perfeição e, adquirirem um valor que seria impossível sem a ação do mal.

6. – No Universo, encontramo-nos frente a Unidade e a Multiplicidade.
Ao olharmos a areia da praia ou a água do rio verificamos que a unidade da praia ou do rio é formada pela multiplicidade dos grãos de areia ou das gotas d’água; na presença de uma árvore ou animal, verificamos, novamente, que a unidade orgânica é constituída por uma multiplicidade de células, tecidos e órgãos; considerando o homem, constatamos uma vez mais, que sua unidade pessoal é constituída pela multiplicidade formada pelo seu corpo e pela sua alma; mais perfeita ainda é a unidade mística da humanidade, composta pela multiplicidade dos homens, na unidade de seus seres-pessoais. Enfim por toda a parte, o que encontramos é sempre a multiplicidade resolvida na unidade; nunca o múltiplo separado do uno, nem o uno independente do múltiplo.
O Deus existente, para ser a causa e a razão deste Universo, onde o múltiplo se resolve no uno, deve em si e, em mais perfeita maneira, realizar a resolução da multiplicidade na unidade. Um Deus uno que exclua a multiplicidade, é tão absurdo quanto deuses múltiplos. Em ambos os casos não seriam capazes de criação: sendo Uno e não múltiplo Deus permaneceria encerrado em si mesmo e, não admitiria a existência de seres exteriores a si; sendo múltiplo e não uno, cada um dos deuses permaneceria imperfeito, limitado e contingente. A unidade é necessária ao Deus criador, mas é necessário também que em seu interior, de certa maneira misteriosa, a multiplicidade encontre-se resolvida na unidade.
7. – O Deus existente, deve conter em si todas as perfeições, não sendo capaz de adquirir novas perfeições, o que implicaria em sua imperfeição atual; mas, por isso mesmo não o podemos considerar como um ente estático, devemos considerá-lo em seu dinamismo criador e amoroso. Para o conter em si todas as perfeições e ao mesmo tempo ser dinâmico, o Ser necessário é Eterno, assim sua atividade incessante não lhe acrescenta novas perfeições, pois todas as suas perfeições e todo o seu agir se concentram no presente eterno.
Sendo Criador e Sustentador dos seres espácio-temporais, o Deus existente, permanecendo Eterno, deve penetrar o histórico, situando-se no centro da imensidade espácio-temporal e assim eliminar o abismo que separa o temporal do Eterno, os seres contingentes do Ser necessário.
Finalmente, o Deus existente amando o Universo e particularmente o homem, a quem dotou de personalidade, deve superar, para o homem e para toda a criação o mal, a destruição e a morte; dando sentido à Fé e à Esperança humana, tornando o homem capaz de sobreviver, em sua integralidade pessoal, a sua própria morte e não permitindo a destruição absoluta e total deste Universo que é obra Sua. No qual o homem, enquanto existente no temporal, realiza sua missão, contribuindo com o seu agir para o progresso deste Universo, para o completo desabrochamento desta obra divina.
Se quisermos evitar o artificialismo em nossa interpretação da realidade, apenas dois caminhos permanecem, ou rejeitar a mensagem cristã e aceitarmos a Absurdidade da Existência, existindo frente ao nosso próprio nada e existindo para o fracasso de nossa própria vida, ao morrer em meio a um Universo absurdo e irracional; ou, aceitar a mensagem cristã, aceitando a realidade misteriosa de um Universo supra-racional, no qual existimos imersos no oceano da caridade divina, com fé e esperança na afirmação de nossa pessoa frente ao Deus de Amor e, na superação de nossa própria morte, permanecendo vivos na Eternidade, ao deixarmos o espácio-temporal.